agosto 11, 2014

"A Revolução Ainda que Tardia: Lenin e o Século 21º", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Desde cedo, muito cedo, a União Soviética e o Comunismo me despertaram a curiosidade. Como poderia ter havido um mundo no qual as coisas funcionaram de um modo diferente? Por que e como ele acabou? Por que a via triunfante, por outro lado, não parecia ter resolvido os problemas dos humanos como, ainda, parecia tê-los agravado? Como suportar um mundo fechado num pensamento único, sem brechas no qual estamos fadados a cumprir um destino incerto, em marcha? A minha investigação sobre isso é uma obsessão que me acompanha até hoje. Inevitavelmente, isso me levou a pensar, à geografia e a história do evento -- as rússias -- e à sua "ontologia", sua conceitualística -- o que foi, como foi, por que foi o Comunismo? O ser por meio do mapa e da narração, o devir como conceito."

A Revolução Ainda que Tardia: Lenin e o Século 21º

Estátua de Lenin em Seattle
Desde cedo, muito cedo, a União Soviética e o Comunismo me despertaram a curiosidade. Como poderia ter havido um mundo no qual as coisas funcionaram de um modo diferente? Por que e como ele acabou? Por que a via triunfante, por outro lado, não parecia ter resolvido os problemas dos humanos como, ainda, parecia tê-los agravado? Como suportar um mundo fechado num pensamento único, sem brechas no qual estamos fadados a cumprir um destino incerto, em marcha? A minha investigação sobre isso é uma obsessão que me acompanha até hoje. Inevitavelmente, isso me levou a pensar, à geografia e a história do evento -- as rússias -- e à sua "ontologia", sua conceitualística -- o que foi, como foi, por que foi o Comunismo? O ser por meio do mapa e da narração, o devir como conceito.

Quando o mestre Bruno Cava retoma a discussão sobre Vladmir Illytch Ulianov, o Lenin, em pleno 2014, me vejo tentado a entrar, pelo bem da copesquisa militante, na discussão.  Seguindo o estilo proposto por Cava, vamos por pontos:

1. Qual a relevância de (ou que pode ter) Lenin como personagem conceitual nos levantes multitudinários contra o Império?

A personagem conceitual é algo tão velho quanto a História da Filosofia. Sócrates, embora possivelmente tenha existido mesmo, importa como personagem conceitual de Platão, como sujeito enunciador de determinados conceitos. Se a diferença entre a literatura e a escrita vulgar é que na primeira, ao contrário da segunda, o escritor não faz personagens de si mesmo, na literatura filosófica, o filósofo não tem como falar apenas por si como conceituador onisciente. Na filosofia contemporânea, Deleuze retomou essa prática, pois antes de ser filósofo, foi historiador da filosofia: ele tratou, já ali, de se livrar da maldita pretensão de retratar de maneira "objetiva", "perfeita" e "fiel" os pensadores e seu sistema conceitual, uma vez que nisso reside uma impossibilidade e, quem sabe, uma desonestidade; o Platão narrado em 2014 jamais será o Platão da Antiguidade, mesmo que o historiador da filosofia não aceite isso. E se quiser, fará como tantos escolásticos que na imparcial tarefa da cópia, cristianizou o Filósofo antes da vinda do próprio Cristo. Deleuze não "se apropria" de ninguém, ele, na verdade, "expropria" essas reservas de saber, fazendo-os planos de consistência mínimos para criar conceitos. Isso não é "trair" o pensamento de ninguém, mas se situar em uma das muitas faces dos gênios e, daí, criar um novo mundo. E é nesse sentido que, possivelmente, Cava se agencie com Lenin: o velho revolucionário como personagem conceitual, uma espécie de espírito material que permite ao filósofo, como cavalo, parir um novo mundo. Cá com meus botões, concordo com isso. A nuance de Lenin que talvez interesse para este novo mundo em ebulição é a daquele que, como incorporador do espírito marxista fez a revolução sair da teoria para tomar as ruas. Agora, como incorporado, a questão é o que ele poderia nos dizer diante dos nossos impasses atuais, sobre tudo sobre o problema central: como atar a horizontalidade, a forma de rede e a liberdade à necessidade de fazer o movimento efetivar suas pautas? De um lado, existe o risco da impotência para manter os princípios, do outro, o autoritarismo colateral ao pragmatismo. Em outras palavras, Lenin teria, ao menos a priori,  importância por ter sido o desdobrador do nó que havia entre centralismo (organização) e democracia (subjetividade), cuja solução seria capaz de disparar o processo comunista (a revolução). 

2. O Triângulo do Leninismo, organização-revolução-subjetividade, em termos práticos, nos serviria?

Aceitando o plano triangular do sistema conceitual leninista, teríamos um encontro com o Édipo, o que poderia ser simplificado com um "isso parece cristianismo com sinais fora do lugar" -- embora falemos uma estrutura muitíssimo pré-cristã. É como se eu dissesse espírito santo-pai-filho. Então, na verdade, estamos falando em organização-revolução-subjetividade. O filho vem no meio, ocupa o entre, embora seja derradeiro na fórmula. Há milhões de questões nisso, mas supondo que isso possa ser um uso anedipiano do Édipo, a que nos interessa é se esse pai poderia conceber esse filho -- e este filho pudesse resolver o impasse que há entre pais e filhos. Como fazer uma revolução que seja capaz de abolir a praga da organização -- e até da sujeição e da subjetividade -- partindo de lá? Passemos ao ponto seguinte.

3. Lenin e os impasses de Marx em torno do Estado e a Revolução: ele os aumentou ou diminuiu?

Lenin tem um livro, não à toa, chamado o Estado e a Revolução. Ele o escreveu criando procedimentos práticos para responder questões deixadas em aberto por Marx. Mas era um Marx ainda muito hegelianizado, conforme o legado intelectual do Gênio alemão conhecido à época: Lenin, que morreu em 1924, portanto não conheceu em vida a dimensão completa do velho Marx, coisa que só veio à tona com a publicação de algumas obras dele -- como os Grundrisse -- após sua morte -- ou mesmo obras de sua juventude tardia -- a como a Ideologia Alemã. Do derradeiro Marx, então, nem se fala. Isso é uma questão importante. Marx era contra o Estado, mas não acreditava, como Lenin, na sua destruição por "decreto"; ele apostava em um determinado caminho de destruição do Estado pelo desmonte das condições objetivas que o possibilitavam, uma vez desencadeado o processo revolucionário. Esse raciocínio de Marx em termos lógicos é preciso, mas talvez o que nem ele, nem Lenin, conceberam é a dimensão ontológica do Estado, mas também como ele se articula com a sociedade -- e as suas classes. Marx colocava Estado, sua abolição e a luta de classes nessas posições do enunciado porque partia de uma premissa, questionada por Bakunin dentre outros, que pontificava o seguinte: a existência de classes sociais é o que impõe a existência do Estado. Mas e se fosse o contrário, se, na verdade, é o Estado o que impõe a existência das classes sociais? A questão do descaminho do Estado revolucionário perpassou o marxismo como um fantasma. Lenin não foi pouco criticado por aceitar a premissa marxista, mas ele propunha a ideia do comissariado e do poder da base, a qualquer tempo, revogar a qualquer tempo o "mandato" daqueles que abusassem do poder, que desviassem a revolução. Isso, no entanto, pareceu dar errado. A experiência prática soviética demonstrou que a abolição das velhas classes, com a manutenção do Estado -- ainda que um Estado "proletário" --, levou a criação de novas classes sociais. Lenin entendia que o aparente sucesso revolucionário não abolia as classes sociais, mas ele pensava que o surgimento de uma nova divisão de classes, no bojo de uma sociedade revolucionária, só se daria como acidente. De fato, isso não foi aconteceu no século 20º. O Estado, uma vez mantido, não só não "definha" como se mantém e recria a sociedade de classes. Talvez um contato com o último Marx, um Marx selvagem, poderia ter ajudado Lenin a observar determinados pontos de fuga: as pulsões, a pré-psicologia das massas, a potência de determinados "arcaísmos" -- como a comuna russa, a obshchina -- existentes em simultaneidade com o "moderno". O Marx que encontrou Morgan talvez fosse capaz de pensar que as comunas rurais, que estavam para eles como estão nossas aldeias indígenas e quilombos, apontam por um além-do-estatal que jamais foi sob o Estado; Lenin, no entanto, destruiu a comuna rural, transformou os sovietes em órgãos sem corpo e apagou o legado dos narodniks porque não tinha essa referência.

4. O fracasso de Lenin invalida seu legado conceitual?

Não, nem invalida seu legado histórico. Lenin é o maior derrotado do século 20º, sua revolução foi solapada pela burocracia com a qual se aliou -- e que confrontava ao mesmo tempo em que colaborava -- e o sistema se fascistizou. Ainda assim, ele foi paradoxalmente seu maior vencedor, pois o exército vermelho derrotou, por vias tortas, Hitler e, também, ele não pode ser responsabilizado pelos crimes de Stalin. Isso não faz com que ele mereça ser lembrado pela "obra" que edificou, isto é, ter feito a revolução que Marx vislumbrou e não fez. Na verdade, Ulianov merece ser lembrado por disparar o devir revolucionário da Rússia do seu tempo: não é no plano do ser que reside a importância de Lenin, mas no plano do devir, do fluir da existência, quando ele tornou a Rússia uma outra em muito pouco tempo. Entre as muitas tentativas e erro, havia um Lenin menor, justamente quando ele se pôs menos a serviço do futuro, da obrigação e dos universais e mais a uma liberdade arriscada, ousada e despretensiosa. Ainda que tenha tentado resolver os impasses de sua gente, e da humanidade, no plano da Consciência, o que ele fez colateralmente no plano dos afetos manteve uma chama que impulsionou um país medieval ao cosmos em poucas décadas, permitindo uma liberação intensa do desejo.

5. Lenin monumento, Lenin condutor: o que fazer?

A questão anterior praticamente rechaça esta, mas ela deve ser enfrentada. Lenin como monumento não interessa a priori, mas num segundo momento até vem ao caso dependendo de onde e como proliferem, p. ex., estátuas do líder russo: nem que seja de um jeito kitsch em Vegas, seus monumentos no ocidente são uma bela provocação, mas que os derrubem no Leste. Pois a existência dos dois fenômenos, ainda que aparentemente em contraposição, caminham na mesma direção: uma estátua de Lenin aqui é contra o poder, lá é a favor. E Lenin como condutor -- e, afinal de contas, como múmia -- é o tipo da coisa que Stalin e os seus fizeram com o intuito deles próprios lhe fazerem as vezes.  Isso precisa ser rechaçado.

6. Teoria do Partido

Esse Lenin menor e contra-o-Estado (ou quase) não incorpora uma nova teoria do partido. Ou não do partido como o conhecemos. O partido leninista, apesar da evidente influência kautskyana, buscava em sua arquitetura exprimir a arquitetura do que mais transformador havia, a fábrica (e Cava concorda com isso); hoje, um leninismo vivo impõe um partido, ou um novo instrumento político, que assuma o design dos principais deflagradores de novas tendências -- como a rede, a metrópole, o movimento/coletivo -- servindo como organizador político do social sem estar engessado em si mesmo.

7. Lenin no Império.

Um elogio a Lenin, que talvez se possa estender aos bolsheviks em geral, é que eles pensavam a opressão capitalista não em termos de etapa e de acidentes do subdesenvolvimento. O "atraso" da Rússia era causa e efeito dos "avanços" da Europa, as economias estavam integradas como a periferia de uma metrópole está ligada a seu centro. Os mensheviks, ao contrário, pensavam em "desenvolver o capitalismo" na Rússia para que exauri-lo, algo que veio à tona anos mais tarde, inclusive de partidos comunistas, sobre a tese explicadora do fracasso soviético: seria impossível o socialismo triunfar "num lugar como a Rússia". O que os mensheviks, etapistas, eurocomunistas e quetais não viam é que os Estados não são unidades separadas uns dos outros, não havendo interação econômica entre eles e uma consequente divisão internacional do trabalho -- gerida pelos próprios Estados. A União Soviética deu errado porque em vez de enfrentar a questão do desenvolvimento desigual, ela procurou, enquanto Estado, "se desenvolver" em relação ao mundo capitalista se utilizando de seus paradigmas -- um erro que começa com Stalin e se aprofunda com todo o revisionismo, no qual a palavra de ordem era "equiparar para ultrapassar", coisa que Guattari e a oposição de esquerda francesa tinha consciência. A União Soviética jamais teria triunfado em escala global, mas se isso tivesse acontecido, ela teria reinado como potência imperialista -- como muitas vezes ela calhou de ser na África e na Ásia Central. Lenin e os velhos bolsheviks, Trotsky à frente, tinham clareza quanto a esse equívoco. Quando pensamos sobre este Império Global, no qual o capitalismo domina toda parte usando-se das estruturas dos estados-nação como ferramentas, o pensamento de Lenin é atual.

8. Lenin contra as maiorias

Charles Bettelheim opunha Lenin a Stalin na medida em que o primeiro impunha ao partido um norte que fugia ao convencional, o normal e ao senso da maioria. Stalin, ao contrário, sintetizava os anseios, as demandas e o ideário médio dos burocratas para prevalecer. O stalinismo só existia em maioria, tendo apoio da maioria e, por isso, ele criava a todo momento as condições objetivas para uma ditadura da maioria: a apresentação de tempos em tempos de inimigos, a dogmatização de consensos momentâneos (inclusive morais) e a paranoia generalizada. Lenin, ao contrário, desafia o a normalidade, propondo em seu lugar a ousadia revolucionária. Essa faceta de Lenin é uma das possíveis para a personagem conceitual do Lenin de (e pelas) minorias, o Lenin menor.

9. Lenin versus Rosa: Democracia ou Socialismo?

A melhor crítica a Lenin, em seu tempo, está na obra da revolucionária  polonesa Rosa Luxemburgo. Há três textos centrais de Rosa, Reforma ou Revolução (1905), um tanto mais introdutório e genérico, Estagnação e Progresso do Marxismo (1903) e, sobretudo, a Revolução Russa (1918). Vamos nos ater ao último, no seus capítulos IV e, sobretudo, capítulo V. Na Revolução Russa critica, com razão, o grande engano dos bolsheviks é, à sua maneira, assumir uma dicotomia que os social-democratas alemães usavam há muito, isto é, "ditadura do proletariado" ou "democracia burguesa". Se a democracia burguesa era, desde sempre, democracia para as camadas altas e médias e supressão de direitos dos pobres e trabalhadores, por outro lado, o "outro" que Lenin e Trotsky afirmaram era uma ditadura nos termos de um Estado comandado pelos líderes da revolução: no lugar da democracia de porta dupla dos burgueses, um regime de força sem liberdades. É a partir daí que Rosa, com acerto, interpreta o conceito marxista de "ditadura do proletariado" -- que seria um mandato temporário e de emergência encabeçado pela vanguarda proletária -- nos termos de uma democracia socialista: democracia plena para todos, com plena constituição de direitos, mesmo quando para se defender da violência reacionária. Rosa tinha razão. Se a revolução em sua fase destituinte, nos termos de Lenin, só poderia ser aclamada como um sucesso, sua fase constituinte de um novo mundo só poderia ocorrer com democracia. Do contrário, o fundo do poço nem seria o limite como, de fato, aconteceu. O Lenin menor só pode ser um Lenin convencido de seu fracasso, o Lenin que teria sido homem do Estado acidental caso tivesse vivido mais. A outra contradição que Rosa aponta no mesmo texto,  o desastre da política agrária leninista -- a qual geraria uma armadilha maior ainda e foi a brecha e a justificativa para a ascensão implacável de Stalin --, se deve, embora ela não aborde isso diretamente, ao desprezo da instituição agrária que  não era "pré-capitalista", mas sim que jamais-foi-capitalista. Será que a potência das comunas russas, e das nossas aldeias e quilombos, não seria maior do que o estímulo aos produtores agrícolas capitalistas?

10. Lenin no Brasil de Hoje?

O Leninismo é parte da nossa história e, a bem da verdade, inspira a esquerda de forma difusa. Como doutrina própria, só mesmo em pequenos partidos de esquerda, de forma ortodoxa, o que, pela falta de conexão com o tempo, os obriga a ficar entre o sonho e a adesão (eternamente) tática de defesa de políticas social-democratas. Que o déficit de efetividade das manifestações não se torne caminho para um "Leninismo crítico", uma reterritorialização ainda-no-Estado, mas para um Leninismo menor assentado nas noções de: (1) vanguarda como tendência contra-maioria; (2) internacionalismo, ou dimensão global, da luta contra a opressão sistêmica; (3) utopismo  material e além-do-voluntarista da ação prática; (4) novidade e tendência de inovação; (5) consciência da relevância do seu plano conceitual, apesar de sua derrota e de suas vacilações, o que impõe a aplicação do método marxista de análise de composição de classe ao olhar para dentro do Estado, voltando-se contra ele; (6) certeza que os anarquistas podem ser qualquer coisa, menos ingênuos; (7)  democracia socialista em Rosa Luxemburgo.
Fonte: O Descurvo

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