PICICA: "Este texto apoia-se indiretamente nos
estudos de Foucault sobre a sexualidade e o poder; digo isso porque
Foucault nunca estudou especificamente a pornografia. Mas através de
seus textos podemos perceber como esta se tornou mais um mecanismo de adestramento dos corpos, recurso de formação subjetiva constante em nosso cotidiano, apesar das proibições e repressões."
Foucault – a miséria da pornografia
Este texto apoia-se indiretamente nos
estudos de Foucault sobre a sexualidade e o poder; digo isso porque
Foucault nunca estudou especificamente a pornografia. Mas através de
seus textos podemos perceber como esta se tornou mais um mecanismo de adestramento dos corpos, recurso de formação subjetiva constante em nosso cotidiano, apesar das proibições e repressões.
Partimos da ideia de que o sexo não é
algo natural, nem uma garantia de liberdade. Talvez, seja exatamente o
contrário. Podemos perguntar, através de quais mecanismos nos tornamos
escravos de nossa própria sexualidade? O que é sexo? É isso ou aquilo? O
que é fazer sexo? Como posso sabê-lo?
“Quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela forma, ocasionam efeitos de miséria?”
(Foucault, Microfísica do Poder). A incitação ao discurso, a partir do
séc. XIX, trocou o fundo das masmorras pelo estudo da alma do criminoso;
o quarto escuro dos leprosários pelas salas brancas dos hospitais; o
confessionário das igrejas pelo divã do psicanalista. Libertem-se,
falem! Falem tudo! Postem no facebook! Digam seus segredos. Através do
modelo panóptico nós nos individualizamos e damos informações cada vez
mais precisas de quem somos e onde estamos.
Proliferação das sexualidades por extensão do poder; majoração do poder ao qual cada um dessas sexalidades regionais dá um campo de intervenção: essa conexão, sobretudo a partir do séc. XIX, é a garantia relançada pelos inumeráveis lucros econômicos que, por intermédio da medicina, da psiquiatria, da prostituição e da pornografia, vincularam-se ao mesmo tempo a essa concentração analítica do prazer e a essa majoração do poder que o controla” – Foucault, História da Sexualidade I
Mas o efeito também é contrário. O
panóptico se inverte quando nos dá prescrições de como devemos ser e nos
comportar. Já falamos disso no texto sobre o Big Brother Brasil (veja aqui), ou nos vários textos sobre publicidade (como este).
Nossa formação contínua se dá através da interiorização dos discursos
do poder. Somos atravessados pelo “dever ser”, constantemente avaliados e
orientados com alguma responsabilidade ou objetivo. Os programas de TV
nos fazem desejar as mulheres de bikini e as comédias românticas nos
ensinam a fazer sexo com “trilha sonora” ao fundo.
O poder age individualmente. Mas se
achamos que estamos escondidos no escuro do nosso quarto quando abrimos
um site pornô, estamos plenamente enganados. A luz dos holofotes está em
cima dos corpos que de forma performática realizam o ato sexual. A
pornografia não diz como é, mas como deve ser, completo esquadrinhamento
da sexualidade em tags, categorias, vídeos mais vistos e cortes de
cena. Através dos vídeos, temos nossa cota semanal (ou diária) de
“formação sexual”. Da mesma forma que aprendemos como nascem os bebês em
uma conversa constrangedora com nossos pais, aprendemos como usar
camisinha em uma aula de “educaçao sexual” na escola, aprendemos o que é
uma mulher bonita na playboy e descobrimos como devemos dar e receber
prazer através dos sites de pornografia.
A experimentação trocada pela imagem. O
que me traz prazer? Como faço para agradar uma mulher ou obter prazer
dela? Sexo colonizado. Encontramos na tela, durante as noites escuras e
solitárias, aquilo que (não) somos. Como um espelho, sem vida em sua
unidade, encontramos quem somos nos sites proibidos para menores. Mas
encontrar-se é perder-se. Esta falsa caixa de pandora é na verdade mais
uma prisão disfarçada de liberdade.
Resultado: não fazemos mais sexo com
corpos, mas com imagens. A pornografia é a miséria sexual tornada
produto de mercantilização. Dá com uma mão, mas tira com a outra; insere
a sexualidade nos mecanismos de poder onde ele se engessa, comprime,
restringe e morre. A esmola dada à heteronormatividade, ao casamento sem
graça, à família nuclear burguesa são os sites pornográficos e livros
como 50 tons de cinza. Falsa utopia, baseada em Sodoma e Gomorra, com um
corpo também utópico: um pênis maior, ereção eterna, gemidos
espalhafatosos, uma ejaculação volumosa. Lutamos por um corpo sem corpo,
do modo mais paradoxal possivel negamos o corpo em nome do prazer
corporal. Reduzimos tudo à tela e à retina.
Esta mídia tem o problema de qualquer
mídia, ela dá muito facilmente aquilo que a gente quer, ele nos deixa
mimados, preguiçosos. Não temos nem tempo de pensar “é isso que eu
quero?”. Ficamos fixados, hipnotizados, vivemos a fantasia através dos
olhos. Depois de um dia cansativo no escritório, só queremos relaxar:
cervejinha no bar e uma Sasha Grey antes de dormir. Claro que toda mídia
tem suas linha de fuga, possibilidades que escapam ao fechamento das
subjetividades (é possível encontrar literalmente qualquer tipo
de filme pornô!), mas clique nos mais vistos… você vê alguma diferença?
Eu não… e isso me deixa desconfiado. É possível a formação de um
inconsciente pornográfico? Onde as mulheres amam sexo anal e os homens
estão sempre eretos? Precisamos pensar duas vezes e nos perguntar se
essa libertação sexual tão confortável não é mais um novo papel definido
do qual não conseguimos escapar. Por que miséria da pornografia? Pelo
estado de extrema pobreza, pela penúria sexual de nossas vidas.
Então podemos concluir que a Razão
Inadequada é contra pornografia? Ou que é purista e casta? De modo
algum! Tomemos cuidados com as generalizações; estamos tratando das
possibilidades que circunscrevem o mundo da pornografia, mas é claro que
existem exceções. Sabemos que existem filmes bons, existem atrizes
pornôs felizes, mas mesmo assim não conseguimos deixar de nos perguntar
perguntar: será que o sexo ainda é uma forma de revolta? É contra establishment? O sexo ainda e capaz de causar polêmica? Ou talvez a polêmica já faça parte do próprio status quo?
“Meu corpo é o contrário de uma
utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno
fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo” (Foucault,
o corpo utópico, as heterotopias). Sentir o corpo, existir fora das
imagens, mergulhar no real, reconhecer o que é seu e o que é empurrado
garganta abaixo (literalmente ou não). Se amamos tanto fazer sexo (ou
chamem de amor) é porque esta é uma das melhores formas de presentificar
o corpo, 100%, sentindo, tocando, trocando fluídos, ficando arrepiado: no amor, o corpo está aqui (Foucault, o corpo utópico, as heterotopias)
Através do nosso desejo, nascem novas formas de relação e subjetivação, para além das identidades e fechamentos sexuais (veja: Ditadura da Sexualidade).
O devir criativo se torna maior que a identidade sexual. Liberdade para
clicar em links pornôs é muito pouco. Estamos hoje sendo medicados com
doses homeopáticas de sexo; temos que fazer o sexo quebrar a própria
máquina sexual que o prende! Fazê-lo ir para além de si mesmo,
reinventar-se e criar novas possibilidades de ser que suportem outros
modos de vida. Por isso não basta apenas escolher entre a categoria de
sexo anal ou oral, é uma questão de reinvenção da própria liberdade.
Um site de pornografia jamais conseguirá
dar conta das múltiplas formas de sexualidade porque ele é um ponto de
chegada, mas o sexo é um ponto de partida. Enquanto a produção de filmes
pornográficos fecha a relação sexual dentro de quatro paredes (mesmo
que seja em público), o sexo permite abrir o mundo para outras formas de
organização, muito além do ato sexual em si.
Podemos prescindir da pornografia? Não
sei. Seguimos entrando em sites pornôs da mesma maneira que colocamos
nossos filhos na escola e mandamos os bandidos pra prisão; não porque
queremos, mas talvez porque ainda não criamos alternativas melhores.
Fonte: Razão Inadequada
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