PICICA: "“Denso, epigramático, de clareza enganosa” é desta forma com que Oliver Todd na biografia Albert Camus uma Vida descreve o livro O Mito de Sísifo. O adjetivo epigramático cai de uma forma perfeita a esta obra de Camus.
Uma composição poética, breve, criativa e engenhosa. É desta maneira
com que Camus desenvolveu seu ensaio filosófico. Neste momento vamos nos
deter a questão do absurdo e suas características."
Camus – O homem sem Deus
“ne sit populus Domini sicut oves absque pastore”
“Denso, epigramático, de clareza enganosa” é desta forma com que Oliver Todd na biografia Albert Camus uma Vida descreve o livro O Mito de Sísifo. O adjetivo epigramático cai de uma forma perfeita a esta obra de Camus.
Uma composição poética, breve, criativa e engenhosa. É desta maneira
com que Camus desenvolveu seu ensaio filosófico. Neste momento vamos nos
deter a questão do absurdo e suas características.
O que Albert Camus
nos apresenta primeiro não é a noção de absurdo, mas sim, um sentimento
de absurdidade. Tal emoção como também grandes pensamentos, pode ter
seu início no que nos é mais comum: “Muitas vezes as grandes obras
nascem na esquina de uma rua ou na porta giratória de um restaurante.
Absurdo assim. O mundo absurdo, mais do que outro, obtém sua nobreza
desse nascimento miserável” (Camus. 2005. p27). É no cotidiano que
o absurdo também mostra a sua face, em que os cenários se desmoronam.
Albert Camus dá o seguinte exemplo de uma vida maquinal:
Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o ‘por quê’ e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. ‘Começa’, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. Em si, a lassidão tem algo de desalentador. Aqui devo concluir que ela é boa. Pois, tudo começa pela consciência e nada vale sem ela. Estas observações nada têm de original. Mas são evidentes: isso basta por algum tempo, até fazermos um reconhecimento sumário das origens do absurdo” (CAMUS. 2005. p27-28).
Diante de uma vida que pode ganhar as
características maquinais, do dia-a-dia, em um momento surge a pergunta:
“Por quê?”. Surge a “lassidão”. Um cansaço de vida. Entretanto, também
vem à consciência de que algo não está certo. Neste momento o homem se
volta ao que lhe prende ou surge uma nova tomada de consciência. O
suicídio ou o restabelecimento. Estes sentimentos são de fato comuns, e
perpassam a estranheza do absurdo. O interessante é que Albert Camus
saliente que diante de tais sentimentos, por vezes banais, triviais,
pode-se nascer à atitude da esquiva ou da revolta. Outros sentimentos e
experiências que Camus aborda é a questão da “revolta da carne”, da
“estranheza”, da “náusea”, da “morte” e de um absurdo relacional que é a
relação entre o desejo de clareza do homem e o silêncio do mundo. Cada
um destes pontos nos diz um pouco sobre a experiência do absurdo.
Quando Camus escreve
sobre a revolta da carne, assim como nos fala sobre a morte, sabe que
ambos se tratam de pequenas irresponsabilidades. Com relação ao
primeiro, o tempo vai levando a vida, mas em determinado momento o homem
se vê como quem deve levar a sua própria vida, então o tempo ganha
outras matizes. Albert Camus sobre este ponto coloca que:
Vivemos no futuro: ‘amanhã’, ‘mais tarde’, “quando você conseguir uma posição”, ‘com o tempo vai entender’. Estas inconsequências são admiráveis, porque afinal trata-se de morrer. Chega o dia em que o homem constata ou diz que tem trinta anos. Afirma assim a sua juventude. Mas, no mesmo movimento, situa-se em relação ao tempo. Ocupa nele o seu lugar. Reconhece que está num certo momento de uma curva que, admite, precisa percorrer. Pertence ao tempo e reconhece seu pior inimigo nesse horror que o invade. O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo. Essa revolta da carne é o absurdo” (CAMUS. 2005. p28)
Este “amanhã”, “mais tarde” são pequenas irresponsabilidades; a palavra que abarca todo este “deixar para depois” é o veneno da esperança.
Entretanto, no momento que o corpo realmente sente o absurdo, toma para
si a experiência do corpo, da finitude, e então passa a rejeitar este
amanhã, pois, trata-se de morrer.
Em outro momento Albert Camus
abordada a “estranheza” com qual o homem pode perceber o mundo. Uma
estranheza de sentir que a natureza não faz parte de nós. Uma pedra é
estranha a nós, como também o é a própria natureza humana. Mesmo as
pessoas que estão à nossa volta podem segregar desumanidade. O rosto
familiar pode deixar de sê-lo. Esta densidade, esta estranheza também é o
absurdo. Jean-Paul Sartre trabalhou esta modalidade de absurdo com
maestria no seu primeiro romance A Náusea.
Roquentin o personagem central do livro estranha a si mesmo, o próprio
corpo e esta percepção também é o absurdo. Outra ideia que observada
pelo autor é a questão da morte e o sentimento que ela nos provoca:
Sobre este ponto já foi dito tudo e o mais decente é resguardar-se do patético. Mas é sempre surpreendente o fato que todo mundo viva como se ninguém ‘soubesse’. Isto se dá porque, na realidade, não há experiência da morte. Em sentido próprio, só é experimentado aquilo que foi vivido e levado à consciência. Aqui, pode-se no máximo falar da experiência da morte alheia. Esta é um sucedâneo, uma opinião e nós nunca ficamos muito convencidos.(…)Este lado elementar e definitivo da aventura é o conteúdo do sentimento absurdo. Sob a iluminação mortal desse destino, aparece a inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são justificáveis a priori diante da matemática sangrenta que ordenam nossa condição”(CAMUS. 2005. p30-31)
Vivemos como se fossemos eternos, mesmo
que tudo venha nos mostrar o oposto. Este saber da própria mortalidade,
não se torna às vezes convincente a ponta de se viver com esta ideia a
ponto dela transformar uma vida, mas esta experiência também é uma
demarcação da experiência absurda. Somos finitos, mesmo que não sentimos
o peso desta afirmação, e na maioria das vezes não tiramos as devidas
conclusões deste fato.
O absurdo também é relacional, e talvez
este seja uns dos argumentos mais interessantes com relação ao absurdo,
porque remete a esfera da inteligência. Sobre este aspecto Albert Camus
escreve que:
Sejam quais forem os jogos de palavras e as acrobacias da lógica, compreender é antes de mais nada unificar. O desejo profundo do próprio espírito em suas operações mais evoluídas une-se ao sentimento inconsciente do homem diante do seu universo: é exigência de familiaridade, apetite de clareza. Compreender o mundo, para um homem, é reduzi-lo ao humano, mascará-lo com seu selo. O universo do gato não é o universo do tamanduá. O truísmo ‘Todo pensamento é antropomórfico’ não tem outro sentido. E também o espírito que procura compreender a realidade não se pode dar por satisfeito sem reduzi-la em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que o universo também pode amar e sofrer, estaria reconciliado (…)Essa nostalgia de unidade, esse apetite de absoluto ilustra o movimento essencial do drama humano”(CAMUS. 2005. p31-32)
De um lado temos o desejo de unidade, o
apetite de absoluto, a vontade titânica de deixar tudo claro, entretanto
do outro lado o mundo em seu total silêncio e indiferença. O absurdo
também é esta relação do homem com o mundo.
Albert Camus caminhou pela revolta da
carne, a estranheza com relação aos objetos, aos outros e a si mesmo, a
experiência da náusea. Também salientou a questão da morte. O ser humano
e sua condição de finitude. O absurdo relacional, o homem e o mundo. A
própria inteligência que tenta unificar, e que quer esclarecer, mas ao
mesmo tempo, não produz uma verdade, mas verdades. Todos estão pontos
são características do absurdo. No âmbito do pensamento filosófico Camus
comenta os seguintes autores: Heidegger, Jaspers, Chestov, Kierkegaard e
Husserl. Em Heidegger a consciência da morte, se torna um momento
fundamental para a autenticidade, para o apelo ao “cuidado”. Jaspers
caminha pela impossibilidade do conhecimento. Chestov vendo que o
racionalismo mais universal, cai em algum momento no irracional do
pensamento humano. Para Kierkegaard nenhuma verdade é satisfatória. Em
Husserl e nos fenomenológicos uma nova atitude para compreender. O
pensamento já não é mais somente unificar, mas sim reaprender a ver,
mas não se trata de um consolo, mas sim de um método. Todos esses
autores perpassaram e também, por que não dizer “viveram” o absurdo de
alguma forma – todos estes autores são citados no Mito de Sísifo, mas um autor que não é tão trabalhado nesta obra, reaparece com vigor no livro O Homem Revoltado, tal filósofo é Friedrich Nietzsche. A questão abordada é a morte de Deus, ou seja, a perda de fundamentos metafísicos para a vida. Não existe algo a priori
que justifique a existência, a vida não tem razão ou finalidade alguma,
a não ser aquela que poderia ser criada pelo próprio homem. Camus
aponta o absurdo desta condição. O homem agora é exilado do seu sentido –
em um primeiro momento, nem a dor, nem a felicidade parecem fazer
sentido. O mar se faz deserto. E neste deserto parece caminhar um homem
solitário.
Fonte: Razão Inadequada
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