PICICA: "A idéia de que o corpo nu pode contestar o primado do rosto por
substituir o rosto está implícita na resposta das mulheres nos processos
de bruxaria, que, interrogadas sobre o porquê beijavam o ânus de Satanás no Sabbath [1],
defendiam-se afirmando que também lá havia um rosto. De modo
semelhante, enquanto no início da fotografia erótica as modelos deviam
ostentar no rosto uma expressão romântica e sonhadora, como se a
objetiva as tivesse surpreendido, não visto, na intimidade do seu boudoir
[quarto de vestir], no decorrer do tempo esse procedimento se inverte e
a única tarefa do rosto se torna a de expressar a despudorada
consciência da exposição do corpo nu ao olhar. A desfaçatez (e perda da
face, do rosto) é então a contrapartida necessária da nudez sem véus. O
rosto, tornado cúmplice da nudez, olhando para as lentes ou atraindo o
espectador, mostra uma ausência de segredo, exprime apenas um dar-se ao
olhar, uma exposição pura."
O niilismo e a beleza dos corpos.
Giorgio Agamben.*
Entre o fim dos anos 20 e início dos 30, Benjamin se uniu a um grupo de amigos muitos atraentes, entre os quais Gert Wissing, Oga Parem e Eva Hermann, que tinham em comum uma própria e especial relação com a aparência.
Nos diários escritos em Costa Azzurra entre maio e junho de 1931, ele procura descrever essa relação, ligando-a ao tema da aparência que tinha abordado, anos antes, no ensaio sobre o romance de Goethe. “A mulher de Speyer”, escreve, “me referiu estas surpreendentes palavras de Eva Hermann, nos dias da sua depressão mais profunda: ‘Se já sou feliz, nem por isso devo sair por aí com um rosto cheio de rugas’. Essa frase me fez entender muitas coisas e, acima de tudo, que o contato periférico que, nos últimos anos, tive com essas criaturas – Gert, Eva Hermann etc. – é apenas um eco fraco e tardio de uma das experiências fundamentais da minha vida: a da aparência [Schein]. Ontem, falei sobre isso com Speyer, que, por sua parte, refletiu também sobre essas pessoas a fez a curiosa observação de que elas não têm nenhum senso de honra, ou melhor, que o seu código de honra é de dizer tudo. Isso é muito certo e prova como é profunda a obrigação que elas sentem com relação à aparência, porque esse ‘dizer tudo’ é entendido, sobretudo, como anular o que é dito, ou melhor, uma vez anulado, fazer dele um objeto: só enquanto aparente [scheinhaft], ele se torna assimilável para elas”.
Poder-se-ia definir essa atitude como “niilismo da beleza”, comum a muitas mulheres bonitas, que consiste em reduzir a própria beleza a pura aparência, e no exibir depois, com uma espécie de tristeza desiludida, essa aparência, desmentindo, obstinadamente, toda idéia de que a beleza signifique algo que não ela mesma. Mas é justamente a ausência de ilusões sobre ela mesma, a nudez sem véus, que a beleza consegue dessa maneira, fornecendo-lhe a sua mais temível atração. Esse desencanto da beleza, esse especial niilismo alcança o seu estágio extremo nas manequins e nas modelos, que aprendem, sobretudo, a anular no seu rosto toda expressão, de modo que isso se torne puro valor de exposição e adquira, por isso, um fascínio particular.
Na nossa cultura, a relação rosto-corpo está marcada por uma assimetria fundamental, que deseja que o rosto permaneça principalmente nu, enquanto o corpo é normalmente coberto. A essa assimetria corresponde um primado da cabeça, que se expressa nos modos mais diversos, mas que permanece mais ou menos constante em todos os âmbitos, da política (em que o titular do poder é chamado de “cabeça”), à religião (a metáfora cefálica do Cristo em Paulo), da arte (em que se pode representar a cabeça sem o corpo – o retrato –, mas não – como é evidente no “nu” – o corpo sem a cabeça) à vida cotidiana, em que o rosto é, por excelência, o lugar da expressão. Isso parece confirmar-se pelo fato de que, enquanto outras espécies animais apresentam frequentemente os sinais expressivos mais vivazes justamente no corpo (os “olhos” do pelo do leopardo, as cores ardentes das partes sexuais do mandril, mas também as asas da borboleta e a plumagem do pavão), o corpo humano é singularmente privado de traços expressivos.
Essa supremacia expressiva do rosto tem a sua confirmação e, ao mesmo tempo, o seu ponto de fraqueza na vermelhidão incontrolável em que se atesta a vergonha pela nudez.
Talvez, é por essa razão que a reivindicação da nudez parece colocar em questão, sobretudo, o primado do rosto. Que a nudez de um corpo bonito pode ocultar ou tornar invisível o rosto é algo que é dito com clareza no Cármides, o diálogo que Platão consagra à beleza. Cármides, o jovem que dá nome ao diálogo, tem um belo rosto, mas, diz um dos interlocutores, o seu corpo é tão belo que “se ele aceitar despir-se, crerás que ele nem sequer tem um rosto” (Cármides 154d) – que ele literalmente é “sem rosto”.
A idéia de que o corpo nu pode contestar o primado do rosto por substituir o rosto está implícita na resposta das mulheres nos processos de bruxaria, que, interrogadas sobre o porquê beijavam o ânus de Satanás no Sabbath [1], defendiam-se afirmando que também lá havia um rosto. De modo semelhante, enquanto no início da fotografia erótica as modelos deviam ostentar no rosto uma expressão romântica e sonhadora, como se a objetiva as tivesse surpreendido, não visto, na intimidade do seu boudoir [quarto de vestir], no decorrer do tempo esse procedimento se inverte e a única tarefa do rosto se torna a de expressar a despudorada consciência da exposição do corpo nu ao olhar. A desfaçatez (e perda da face, do rosto) é então a contrapartida necessária da nudez sem véus. O rosto, tornado cúmplice da nudez, olhando para as lentes ou atraindo o espectador, mostra uma ausência de segredo, exprime apenas um dar-se ao olhar, uma exposição pura.
Uma miniatura em um manuscrito da “Clavis physicae di Onorio di Autun” mostra um personagem (trata-se, talvez, do autor) que tem nas mãos um pequeno embrulho onde se lê: “Involucrum rerum petit is sibi fieri clarum”, “Este procura revelar o invólucro das coisas”. Poder-se-ia definir a nudez como o invólucro no ponto em que fica claro que não é possível revelá-lo.
É nesse sentido que se deve entender a máxima ghoethiana segundo a qual a beleza “nunca pode revelar a si mesma”. Só porque ela fica até o último “invólucro”, só porque permanece, em sentido literal, “inexplicável”, a aparência, que alcança o seu estágio supremo na nudez, pode afirmar-se bela. Não significa, porém, que, por não se poder ser claro sobre a nudez e a beleza, haja nelas um segredo que não é possível de se esclarecer. Uma tal aparência seria misteriosa, mas, justamente por isso, não seria invólucro, porque seria possível continuar procurando para sempre o segredo que nela se esconde.
No inexplicável invólucro, pelo contrário, não há nenhum segredo, e, despido, ele se mostra como pura aparência. O rosto bonito, que a nudez exibe sorrindo, diz apenas: “Queres ver o meu segredo? Queres desvendar o meu invólucro? Então, olha isto, se és capaz, olha esta absoluta, imperdoável ausência de segredo!”. O matema [2] da nudez é, nesse sentido, simplesmente: haecce!, “não há nada além disso”.
E, no entanto, é justamente esse desencanto da beleza da nudez, essa sublime e miserável exibição da aparência além de todo mistério e todo significado que desativa o dispositivo teológico que permite ver, além do prestígio da graça e da sedução da natureza corrompida, o simples, inaparente corpo humano. A desativação do dispositivo retroage tanto sobre a natureza quanto sobre a graça, sobre a nudez como sobre a veste, liberando-as da sua marca teológica. Essa simples constância da aparência na ausência de segredo é o seu tremor especial – a nudez, que, como uma voz suave, não significa nada e, justamente por isso, nos trespassa.
Notas:
- Na bruxaria, o Sabbath é um momento de reunião e comunhão religiosa entre bruxas, que se pratica em torno celebração de uma comunicação com os seres espirituais de onde provem o seu poder e existência. Era realizada pelas bruxas do século XV, parodiando a missa cristã, com a crença de que o demônio se fazia, geralmente incorporado na forma de um bode negro.
- Matema (mathème, em francês) é um termo lacaniano usado para indicar um tipo de escrita que se assemelha às formas algébricas e formais existentes na matemática, que permite uma transmissão do saber que se refere à estrutura além das próprias variações do imaginário e que foge à necessidade do suporte da palavra do autor.
**Imagem-retrato de Joel-Peter Witkin, Faces of Women - ano 2004.
Fonte: Territórios de Filosofia
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