PICICA: "Rubem Alves, falecido há poucos dias,
dizia que a metáfora é uma das melhores formas de comunicar uma ideia.
Assim, fiquei pensando numa metáfora que pudesse representar o processo
pelo qual trabalhadoras e trabalhadores, hoje em dia, são levados a
vender não apenas sua força de trabalho, mas também suas almas. Pode
parecer exagerado, mas é assim que funciona neste capitalismo regido
pelo toyotismo: a subjetividade do trabalhador é capturada, fazendo com que este internalize os interesses do capital
como se fossem os seus próprios, a ponto de abrir mão de direitos em
troca da promessa de participar da apropriação da riqueza produzida
pelas empresas.
Pois bem. Espero explicar com uma metáfora como se operou esse “milagre” – para o capital, obviamente."
O chicote e a rapadura
Rubem Alves, falecido há poucos dias,
dizia que a metáfora é uma das melhores formas de comunicar uma ideia.
Assim, fiquei pensando numa metáfora que pudesse representar o processo
pelo qual trabalhadoras e trabalhadores, hoje em dia, são levados a
vender não apenas sua força de trabalho, mas também suas almas. Pode
parecer exagerado, mas é assim que funciona neste capitalismo regido
pelo toyotismo: a subjetividade do trabalhador é capturada, fazendo com que este internalize os interesses do capital
como se fossem os seus próprios, a ponto de abrir mão de direitos em
troca da promessa de participar da apropriação da riqueza produzida
pelas empresas.
Pois bem. Espero explicar com uma metáfora como se operou esse “milagre” – para o capital, obviamente.
* * *
Era uma vez um grande engenho de cana-de-açúcar. Os
trabalhadores do engenho, em troca do trabalho, recebiam uma rapadura no
fim do mês. Seu trabalho era supervisionado por um capataz, que
dispunha de um bacamarte, para disparar em caso de rebelião. Cada
operário, no entanto, carregava consigo um chicote, para defesa pessoal,
no caso de aparecer alguma fera da mata que circundava o engenho.
Certa vez, percebendo que trabalhavam cada vez mais,
mas recebiam sempre a mesma rapadura no fim do mês, os trabalhadores
resolveram se unir e paralisar o engenho para protestar. Bem que o
capataz tentou restabelecer a ordem com seu bacamarte. Mas a arma foi
insuficiente diante dos chicotes nas mãos dos operários. Quando o
capataz apontava o rifle na direção de um rebelde, eis que um outro
aparecia por trás e lhe dava uma chicotada nas costas. Não houve outro
jeito para solucionar essa insubordinação senão negociar com os
trabalhadores. Ficou decidido que cada um receberia rapadura e meia por
mês, e todos aceitaram voltar ao trabalho.
Esse processo se repetiu algumas vezes. Mas o senhor
de engenho estava pensando em alguma solução para acabar com essas
rebeliões. Contratar mais capatazes seria bom, mas para essa medida ser
eficaz contra a superioridade numérica dos chicotes, teria que contratar
um capataz para cada dois trabalhadores. Não, isso não compensava.
Eis que o dono do engenho teve uma ideia brilhante:
substituir trabalhadores por máquinas. Com essa troca, metade dos
trabalhadores foi mandada embora – afinal, era preciso alguém para
operar as máquinas. É bem verdade que a troca não foi aceita sem
resistências, mas o medo de perder o emprego enfraqueceu o movimento. De
fato, os que ficaram tornaram-se mais medrosos e, por muito tempo não
houve uma paralisação.
Contudo, as máquinas exigiam dos trabalhadores um
ritmo de trabalho frenético. Chegou ao ponto em que os operários não
aguentavam mais a carga de trabalho, para ganhar a mesma quantidade de
rapaduras que recebiam antes das máquinas. Depois de muito tempo,
decidiram se unir e parar tudo de novo. Desta vez, vieram capatazes de
fora para ajudar a reprimir o movimento. Mas só os operários conheciam
as máquinas, de modo que tiraram as peças que as faziam funcionar e
foram se esconder no mato. Por mais que o senhor de engenho tivesse
ordenado que os capatazes colocassem as máquinas em funcionamento, eles
não sabiam como fazer isso. Contrariado, o senhor teve que ceder às
pressões dos operários e pagar umas rapaduras a mais para cada um voltar
ao trabalho.
Mas o dono do engenho não engoliu essa nova derrota.
Não descansou até pensar em um plano para acabar com as rebeliões. E foi
aí que teve uma ideia genial. Lembrou-se daquele ditado: “se você não
pode contra eles, junte-se a eles”. Não, ele não coletivizou a
propriedade dos meios de produção, ingênuo marxista. Ele aplicou o
ditado, só que ao contrário. Fez com que os trabalhadores se tornassem
aliados do senhor de engenho. Como? Foi simples.
Primeiro, ele aplicou a estratégia de “dividir para
conquistar”: criou distinções entre os trabalhadores, com diferentes
atribuições e faixas salariais. Os mais obedientes, mais produtivos ou
que contribuíssem com sugestões, obviamente, ganhavam mais rapaduras. Os
mais resistentes, menos produtivos ou desinteressados ganhavam menos.
Isso gerou divisões internas entre os operários e enfraqueceu seu poder
de mobilização. Mas, ainda assim, eles conservavam consigo seus
chicotes, e o senhor via nisso ainda uma ameaça.
Então, em seguida, o dono do engenho propôs um pacto
com cada um deles. Quem entregasse o seu chicote poderia se tornar chefe
do engenho, e ganhar dez vezes mais rapaduras do que ganhava por mês.
Seria escolhido aquele que superasse a meta e atingisse a maior
produtividade no período de um ano. Por outro lado, quem não cumprisse a
meta estaria sujeito a levar umas chicotadas. A partir desse momento,
eles não seriam mais simples trabalhadores, mas se tornariam
colaboradores, contribuindo diretamente para o sucesso da indústria
açucareira. Como que mariposas seduzidas pela luz do fogo, os
trabalhadores, um a um, selaram o pacto com o dono do engenho, na
esperança de poderem nadar num mar de rapaduras.
Ledo engano para a maioria. Logo que estava com todos
os chicotes em mãos, o senhor de engenho ordenou a demissão de 50% dos
funcionários. Um deles, o mais obediente, foi nomeado chefe, com a
missão de dobrar a produção do engenho em um ano. A outra metade, teve
que dar conta de atingir essa missão impossível.
Bem que o chefe tentou de tudo para incentivá-los:
distribuição de brindes, dinâmicas de grupo, eleição do funcionário do
mês… ainda assim, a produtividade se mantinha estagnada. Foi aplicado,
desse modo, o último recurso: chicotadas nas costas dos incompetentes.
Mas nada disso adiantou. Doze meses depois e
completamente esgotados, todos os funcionários foram demitidos, já que
não cumpriram a meta. Como havia muitos desempregados, não foi difícil
preencher as vagas que se abriram, pagando um décimo daquilo que
recebiam os demitidos. E, é claro, não permitindo que mais ninguém
tivesse um chicote, a não ser o dono do engenho.
Moral da história: mais vale um chicote na mão do que uma rapadura voando.
Fonte: Colunas Tortas