agosto 07, 2014

"Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”." Beatriz Preciado.

PICICA: "A noção de sexopolítica toma Foucault como ponto de partida, contestando, porém, sua concepção de política, segundo a qual o biopoder não faz mais do que produzir as disciplinas de normalização e determinar as formas de subjetivação. Ao nos inspirarmos nas análises de Maurizio Lazzaroto,7 que distingue o biopoder da potência de vida, podemos compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências políticas, e não simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo. Isso significa que à história da sexualidade iniciada por Foucault devemos acrescentar vários capítulos. A evolução da sexualidade moderna está diretamente relacionada com a emergência disso que podemos chamar de novo “Império Sexual” (para ressexualizar o Império de Hardt e de Negri). O sexo (os órgãos sexuais, a capacidade de reprodução, os papéis sexuais para as disciplinas modernas…) é correlato ao capital. A sexopolítica não pode ser reduzida à regulação das condições de reprodução da vida nem aos processos biológicos que se “referem à população”. O corpo straight é o produto de uma divisão do trabalho da carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função. Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da vagina, do ânus. É assim que o pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e reprodutores. Capitalismo sexual e sexo do capitalismo. O sexo do vivente revela ser uma questão central da política e da governabilidade."


Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”.

Beatriz Preciado.

À memória de Monique Wittig

“Entramos num tempo em que as minorias do mundo
começam a se organizar
contra os poderes que lhes dominam e contra todas as
ortodoxias”

(Félix Guattari, 1973)
 
A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida.1

Ao distinguir as “sociedades soberanas” das “sociedades disciplinares”, Foucault chamou nossa atenção sobre a passagem, que se fez na época moderna, de uma forma de poder que decide e ritualiza a morte para uma nova forma de poder que calcula tecnicamente a vida, em termos de população, de saúde ou de interesse nacional. Esse é, aliás, o momento preciso em que uma nova clivagem, heterossexual/homossexual, apareceu. Ao trabalhar numa perspectiva que já vinha sendo explorada por Audre Lorde,2por Ti-Grace Atkinson3 e pelo manifesto The Woman-Identified Woman4das “Radicalesbians”, Wittig chegou a descrever a heterossexualidade não como uma prática sexual, mas como um regime político5 que faz parte da administração dos corpos e da gestão calculada da vida no âmbito da biopolítica.6 Uma leitura cruzada de Wittig e de Foucault teria permitido, desde o início dos anos 1980, dar uma definição de heterossexualidade como tecnologia biopolítica, destinada a produzir corpos straight.
 
O Império Sexual

A noção de sexopolítica toma Foucault como ponto de partida, contestando, porém, sua concepção de política, segundo a qual o biopoder não faz mais do que produzir as disciplinas de normalização e determinar as formas de subjetivação. Ao nos inspirarmos nas análises de Maurizio Lazzaroto,7 que distingue o biopoder da potência de vida, podemos compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências políticas, e não simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo. Isso significa que à história da sexualidade iniciada por Foucault devemos acrescentar vários capítulos. A evolução da sexualidade moderna está diretamente relacionada com a emergência disso que podemos chamar de novo “Império Sexual” (para ressexualizar o Império de Hardt e de Negri). O sexo (os órgãos sexuais, a capacidade de reprodução, os papéis sexuais para as disciplinas modernas…) é correlato ao capital. A sexopolítica não pode ser reduzida à regulação das condições de reprodução da vida nem aos processos biológicos que se “referem à população”. O corpo straight é o produto de uma divisão do trabalho da carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função. Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da vagina, do ânus. É assim que o pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e reprodutores. Capitalismo sexual e sexo do capitalismo. O sexo do vivente revela ser uma questão central da política e da governabilidade.

De fato, a análise foucaultiana da sexualidade é muito dependente de certa ideia de disciplina no século XIX. Seu conhecimento dos movimentos feministas americanos, da subcultura sadomasoquista (SM) ou da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) na França, nada disso o levou a considerar verdadeiramente a proliferação das tecnologias do corpo sexual no século XX: medicalização e tratamento das crianças intersexos, gestão cirúrgica da transexualidade, reconstrução e “aumento” da masculinidade e da feminilidade normativas, regulação do trabalho sexual pelo Estado, boom das indústrias pornográficas… Sua rejeição à identidade e ao ativismo gay levá-lo-á a forjar uma retroficção à sombra da Grécia Antiga. Assistimos nos anos 1950 a uma ruptura no regime disciplinar do sexo. Anteriormente, e em continuidade com o século XIX, as disciplinas biopolíticas funcionaram como uma máquina de naturalizar o sexo. Mas essa máquina não era legitimada pela “consciência”. Ela o será por médicos como John Money, que começa a utilizar a noção de “gênero” para dar conta da possibilidade de modificar cirúrgica e hormonalmente a morfologia sexual das crianças intersexos e das pessoas transexuais. Money é o Hegel da história do sexo. Essa noção de gênero constitui um primeiro momento da reflexividade (e, portanto, uma mutação irreversível em relação ao século XIX). Com as novas tecnologias médicas e jurídicas de Money, as crianças “intersexuais”, operadas no nascimento ou tratadas durante a puberdade, tornam-se as minorias construídas como “anormais” em benefício da regulação normativa do corpo da massa straight. Essa multiplicidade de anormais é a potência que o Império Sexual se esforça em regular, controlar, normalizar.

O “pós-moneísmo” é para o sexo o que o pós-fordismo é para o capital. O Império dos Normais, desde os anos 1950, depende da produção e da circulação em grande velocidade do fluxo de silicone, fluxo de hormônio, fluxo textual, fluxo das representações, fluxo de técnicas cirúrgicas, definitivamente, fluxo dos gêneros. Com certeza, nem tudo circula de maneira constante e, sobretudo, os corpos não retiram os mesmos benefícios dessa circulação: é nessa circulação diferencial de fluxos de sexualização que se desempenha a normalização contemporânea do corpo. Isso nos traz um lembrete oportuno de que o conceito de “gênero” é, antes de tudo, uma noção sexopolítica, mesmo antes de se tornar uma ferramenta teórica do feminismo americano. Não é por acaso que, nos anos 1980, no debate entre feministas “construtivistas” e feministas “essencialistas”, a noção de “gênero” tornar-se-ia o instrumento teórico fundamental para conceitualizar a construção social, a fabricação histórica e cultural da diferença sexual, diante da reivindicação da “feminilidade” como substrato natural, como forma de uma verdade ontológica.
 
Políticas das multidões queer

De noção posta ao serviço de uma política da reprodução da vida sexual, o gênero se torna o indício de uma multidão. O gênero não é o efeito de um sistema fechado de poder nem uma ideia que recai sobre a matéria passiva, mas o nome do conjunto de dispositivos sexopolíticos (da medicina à representação pornográfica, passando pelas instituições familiares) que serão o objeto de uma reapropriação pelas minorias sexuais. Na França, a manifestação em maio de 1970, o número 12 de Tout e o de Recherches (Trois milliards de pervers), o movimento anterior ao Mouvement de Libération des Femmes (MLF), a FHAR e as terroristas das Gouines Rouges constituem uma primeira ofensiva dos “anormais”.

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais… As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer.

O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de “desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se “normal”. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos “normais” ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual.

Podemos pensar a condição para evitar duas armadilhas conceituais e políticas, duas leituras (infelizes, mas possíveis) de Foucault. É preciso evitar a segregação do espaço político que faria da multidão queer um tipo de margem ou de reservatório de transgressão. Não precisamos cair na armadilha da leitura liberal ou neoconservadora de Foucault que nos levaria a pensar as multidões queer em oposição às estratégias identitárias, tendo a multidão como uma acumulação de indivíduos soberanos e iguais perante a lei, sexualmente irredutíveis, proprietários de seus corpos e reivindicando seus direitos ao prazer inalienável. A primeira leitura objetiva uma apropriação da potência política dos anormais numa ótica de progresso; a segunda ignora os privilégios da maioria e da normalidade (hétero)sexual, não reconhecendo que esta última é uma identidade dominante. É preciso admitir que os corpos não são mais dóceis”Desidentificação” (para retomar a formulação de De Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias do corpo e desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das multidões queer.

Desidentificação surge das “sapatas” que não são mulheres, das bichas que não são homens, das trans que não são homens nem mulheres. Desse ponto de vista, se Wittig foi retomada pelas multidões queer, é precisamente porque sua declaração segundo a qual “as lésbicas não são mulheres” é um recurso que permite opor-se à desidentificação, à exclusão da identidade lésbica como condição de possibilidade de formação do sujeito político do feminismo moderno. Identificações estratégicas. As identificações negativas como “sapatas” ou “bichas” são transformadas em possíveis lugares de produção de identidades resistentes à normalização, atentas ao poder totalizante dos apelos à “universalização”. Sob o impacto da crítica pós-colonial, as teorias queer dos anos 1990 contaram com enormes recursos políticos da identificação “gueto”; identificações que tomariam um novo valor político, já que, pela primeira vez, os sujeitos de enuciação eram as “sapatas”, as “bichas”, os negros e as próprias pessoas transgêneros. Aos que se agitam sob a ameaça de guetização, os movimentos e as teorias queer respondem por meio de estratégias ao mesmo tempo hiperidentitárias e pós-identitárias. Fazem uma utilização máxima dos recursos políticos da produção performativa das identidades desviantes. A força política de movimentos como Act Up, Lesbian Avengers ou Radical Fairies vem de sua capacidade para investir nas posições de sujeitos “abjetos” (esses “maus sujeitos” que são os soropositivos, as “sapatas”, os “viados”) para fazer disso lugares de resistência ao ponto de vista “universal”, à história branca, colonial e straight do “humano”.

Felizmente, eles não compartilham da desconfiança que foi – devemos insistir – a de Foucault, Wittig e Deleuze para com a identidade como lugar da ação política, a despeito de suas diferentes maneiras de analisar o poder e a opressão. No início dos anos 1970, o Foucault francês toma distanciamentos em relação à FHAR por causa daquilo que ele qualificou de “tendência à guetização”; enquanto o Foucault americano parecia apreciar muito as “novas formas de corpos e de prazeres” que as políticas da identidade gay, lésbica e SM permitiram emergir no bairro Castro, “‘o gueto’ de São Francisco”. Por outro lado, Deleuze criticou isso que ele chamou de uma identidade “homossexual molar”, por pensar que ela fazia a promoção do gueto gay, para idealizar a “homossexualidade molecular”, que lhe permitia fazer das “boas” figuras homossexuais, de Proust à “travesti efeminada”, exemplos paradigmáticos dos processos do “tornar-se mulher”, que estavam no centro de sua agenda política. Isso também permitiu que ele dissertasse sobre a homossexualidade em vez de interrogar seus próprios pressupostos heterossexuais.8 Quanto a Wittig, podemos nos perguntar se sua adesão à posição de “escritora universal” impediu sua supressão da lista dos “clássicos” da literatura francesa depois da publicação de Corps Lesbien, em 1973. Sem dúvida que não, sobretudo quando vemos a pressa com a qual o jornal Le Monde reintitulou seu obituário com um “Monique Wittig, a apologia do lesbianismo”, encabeçado pelo vocábulo “desaparecimento”.9

Desvios das tecnologias do corpo. Os corpos da multidão queer são também as reapropriações e os desvios dos discursos da medicina anatômica e da pornografia, entre outros, que construíram o corpo straight e o corpo desviante moderno. A multidão queer não tem relação com um “terceiro sexo” ou com um “além dos gêneros”. Ela se faz na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre os sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas específicas de produção dos corpos “normais” e “desviantes”. Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientesciborgues… O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas.

Essa reapropriação dos discursos de produção de poder/saber sobre o sexo é uma reviravolta epistemológica. Em sua introdução programática ao famoso número de Recherches, sem dúvida inspirado pela FHAR, Guattari descreve essa mutação nas formas de resistência e de ação política: o objeto desse dossiê – as homossexualidades, hoje na França – não poderia ser abordado sem se remeter à questão dos métodos ordinários da pesquisa em ciências humanas que, sob o pretexto de objetivismo, tentam estabelecer uma distância máxima entre o pesquisador e seu objeto [...]. A análise institucional, ao contrário, implica um descentramento radical da enunciação científica. Não basta, porém, se contentar em “dar a palavra” aos sujeitos interessados – isto é, às vezes, uma abordagem formal, jesuítica mesmo – ainda é preciso criar as condições para um exercício total, ou paroxístico, dessa enunciação [...] Maio de 68 nos ensinou a ler sobre os muros e, depois, começamos a decifrar os grafites nas prisões, nos asilos e hoje nos banheiros. É todo um “novo espírito científico” que está por ser refeito.10

A história dos movimentos político-sexuais pósmoneístas é a história dessa criação das condições de um exercício total de enunciação, a história de uma inversão da força performativa dos discursos e de uma reapropriação das tecnologias sexopolíticas de produção dos corpos dos “anormais”. A tomada da palavra pelas minorias queer é um advento não tanto pós-moderno como pós-humano: uma transformação na produção, na circulação dos discursos nas instituições modernas (da escola à família, passando pelo cinema ou pela arte) e uma mutação dos corpos.

Desontologização do sujeito da política sexual. Nos anos 1990, uma nova geração emanada dos próprios movimentos identitários começou a redefinir a luta e os limites do sujeito político “feminista” e “homossexual”. No plano teórico, essa ruptura inicialmente assumiu a forma de uma revisão crítica sobre o feminismo, operada pelas lésbicas e pelas pós-feministas americanas, apoiando-se sobre Foucault, Derrida e Deleuze. Reivindicando um movimento pós-feminista ou queer, Teresa de Lauretis,11 Donna Haraway,12 Judith Butler,13 Judith Halberstam14 (nos Estados Unidos), Marie-Hélène Bourcier15 (na França), mas também as lésbicas chicanas como Gloria Andalzua16 ou as feministas negras como Barbara Smith17 e Audre Lorde, atacarão a naturalização da noção de feminilidade que havia sido, inicialmente, a fonte de coesão do sujeito do feminismo. A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha. Se as multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e heterocêntrico.

Quanto aos movimentos de liberação gays e lésbicos, uma vez que seu objetivo é a obtenção da igualdade de direitos e que se utilizam, para isso, de concepções fixas de identidade sexual, contribuem para a normalização e a integração dos gays e das lésbicas na cultura heterossexual dominante, favorecendo políticas familiares, tais como a reivindicação do direito ao casamento, à adoção e à transmissão do patrimônio. É contra esse essencialismo e essa normalização da identidade homossexual que as minorias gays, lésbicas, transexuais e transgêneros têm reagido. Algumas vozes se levantam para questionar a validade da noção de identidade sexual como único fundamento da ação política e para opor uma proliferação de diferenças (de raça, de classe, de idade, de práticas sexuais não normativas, de deficientes). A noção medicalizada da homossexualidade, que data do século XIX e define a identidade pelas práticas sexuais, foi abandonada em proveito de uma identificação política e estratégica das identidades queer. A homossexualidade bem policiada e produzida pela scienta sexualis do século XIX explodiu; foi transbordada por uma multidão de “maus sujeitos” queer.

A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologização do sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que possa legitimar a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, tal como foi explorada tanto pelo feminismo essencialista (de Irigaray a Cixous, passando por Kristeva) como pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise (Roudinesco, Héritier, Théry…). Ela se opõe às políticas paritárias derivadas de uma noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às políticas republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e impõem a “integração” das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”. Nesse sentido, as políticas das multidões queer se opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se querem soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias sexopolíticas straight, que dominam ainda a produção da ciência.
 
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Notas

1 Este artigo foi traduzido por Cleiton Zóia Münchow e Viviane Teixeira Silveiras a partir do texto original em francês, publicado em 2003 na revista Multitudes (Beatriz PRECIADO, 2003).  
2 Audre LORDE, 1984.
3 Ti-Grace ATKINSON, 1970 e 1974.
4 RADICALESBIANS, 1971.  
5 Monique WITTIG, 2001.  
6 Michel FOUCAULT, 1976.  
7 Maurizio LAZZARATO, 2002.  
8 Para uma análise detalhada dessa utilização de metáforas homossexuais, ver capítulo intitulado “Deleuze ou l’amour qui n’ose pas dire son nom”, do Manifeste Contrasexuel, de 2000.
9 LE MONDE, 2003.
10 Félix GUATTARI, 1973, p. 2-3.  
11 Teresa DE LAURETIS, 1987.  
12 Donna HARAWAY, 1991.  
13 Judith BUTLER, 1990.  
14 Judith HALBERSTAM, 1998.
15 Marie-Hélène BOUCIER, 2001.  
16 Gloria ANDALZUA, 1987.  
17 Gloria HULL, Bell SCOTT e Barbara SMITH, 1982.

Fonte: Território de Filosofia

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