PICICA: "Tendo como personagem S.Paulo, filme
de Paulo Sacramento sugere opressão, angústia e medo invencíveis. Mas
frase emblemática provoca: só que não…"
Em Riocorrente, o niilismo e seu oposto
Tendo como personagem S.Paulo, filme
de Paulo Sacramento sugere opressão, angústia e medo invencíveis. Mas
frase emblemática provoca: só que não…
Por Deni Rubbo
Paulo Sacramento, estreante no cinema de ficção (ele dirigiu o documentário O prisioneiro da grade de ferro), conseguiu um feito notável em Riocorrente:
espalhar a centelha da provocação, no sentido mais radical da palavra,
tanto na forma quanto no conteúdo. A verdade é que saímos desorientados
depois de assistir o filme, um pouco anestesiados, um pouco perdidos,
como se fosse impossível iluminar um farol de luz no meio dos escombros.
Mas, aos poucos, como de costume, voltamos à vida real, a anestesia
diminui quando de repente nos deparamos com o seguinte paradoxo: a
realidade fora do filme é a mesma realidade do filme. A sensação não
poderia ser diferente, duríssima, sufocante, como se tivéssemos
eternamente sob uma “jaula de ferro”, como diria o sociólogo Max Weber,
ou no interior do quadro O grito, de Edvard Münch, ou num sonho kafkiano.
Pesadelos à parte, essa aflição ganha
potencialidade especialmente quando o filme é assistido em São Paulo, já
que a cidade não é apenas um espaço contingente da trama, mas um
personagem tão protagonista quanto Renata, Marcelo, Carlos e Exu.
Todavia, Riocorrente não almeja oferecer descrições, flashes de lugares e cenas da cidade desvairada, mas expor a paranoia
social contemporânea dos espectros que rondam homens subterrâneos da
cidade paulistana. São personagens sem prumo. “A agonia dos que
sobrevivem em São Paulo em meio às honras e covardias”, como invocam os
Racionais MC’s na letra Negro Drama.
À primeira vista, o filme versa sobre um
triângulo amoroso numa narrativa “clássica”. Mas, aos poucos, a trama
entre esses personagens não parece ser o vetor principal do filme. Tudo
começa a ficar descompassado. Não há informações suficientes sobre esse
ou aquele personagem. Diálogos ou problemas não serão retomados nas
cenas subsequentes: ou se resolve ali, numa sequência, ou simplesmente
fica em suspenso. Não se sabe, por exemplo, se o menino Exu tem ou não
algum tipo de parentesco com Marcelo ou, ainda, se Carlos e Marcelo
sabem do duplo relacionamento de Renata. Não demora muito para se
compreender que a intenção está em estimular uma reflexão na esfera
simbólica (e quiçá alegórica) sobre a vida, o sentido e o sentimento do
mundo (no plural) cujo espaço é a aldeia São Paulo, com suas arestas,
momentos não lineares, efeitos especiais e caos narrativo.
Na realidade, os personagens são um mero
pretexto. Trata-se, antes, de um filme que expressa um sentimento, um
espírito de determinada época. De como personagens se relacionam e
transitam numa cidade enferma. Tudo gera aflição, pânico. Os leões que
uivam; os ratos que devoram jornais; as árvores que viram lixo; um carro
sendo riscado com canivete; os semáforos fechados. Todas essas imagens
(assim como o efeito do som ao redor que, em vários momentos, aumenta
até o insuportável) assumem maior preponderância do que a fala dos
personagens, o enredo em si. O cartão postal é justamente uma ironia
fétida, visualmente degradante: o rio Tietê, aquilo que está mais
apodrecido na cidade. E somos, todos os dias, um pouco desse rio, que
tudo arrasta (o stress, o compromisso, a angústia, o medo) e que
se diz violento, indigesto. Mas ninguém fala da violência das margens, a
sociedade moderna e suas instituições, que o (e nos) oprimem.
Todos ali na atmosfera de Riocorrente parecem, muitas vezes, encarnar imagens alucinantes de o Uivo,
longo poema visceral do americano Allen Ginsberg, publicado em 1956,
sobre a geração destruída pela loucura e histeria. O menino Exu fica
“sentado em caixotes respirando a escuridão sob a ponte” do rio Tietê;
Marcelo, o jornalista, rabisca “a noite toda deitando e rolando sobre
invocações sublimes que ao amanhecer revelaram-se versos de tagarelice
sem sentido”; Carlos, o ladrão de carros, está “em busca de uma dose
violenta de qualquer coisa” e “flutuando sobre os tetos das cidades
contemplando jazz”; Renata copula em “êxtase insaciável” procurando
sexo, garrafa de cerveja, um maço de cigarros.
Quase sessenta anos depois da publicação
dos versos do ícone da geração beat, a energia de seu poema ressoa
primorosamente nas vielas, no sangue, na graxa de São Paulo de 2014,
numa espantosa atualidade.
Em Riocorrente, há muito cru e pouco cozido. Ou melhor: sobre o que resta do que está vivo na brasa da vida. Morre-se ou sobrevive-se?
Talvez o “comentário” de um dos
personagens que narra em um determinado momento seus desenhos, indique a
principal chave para decifrar o enigma do filme: nós, homens
subterrâneos, somos uma inescrupulosa mistura de ternura, vaidade,
cobiça, esperança e pornografia. Nessa direção, o que importa é
registrar o testemunho das incapacidades dos personagens, o fracasso de
suas experiências interiores, a fugacidade consciente ou inconsciente de
algo, a frustração por não atingir metas estabelecidas, o
distanciamento dos sonhos.
Porém, esse caldeirão niilista que a obra carrega é contrabalanceado com uma frase que curiosamente começa e encerra o filme: “Tem
de começar em algum lugar. Tem de começar alguma hora. Que lugar melhor
que esse, que momento melhor que agora?”. A visão do diretor não
poderia ser diferente (afinal, como dizia aquele para quem o
filme foi dedicado, Carlos Reichenbach, “o cinema é uma tentativa de
entender seu mundo”): um fio de ambiguidades que mescla fascínio, medo e repulsa.
Mas também o filme é decididamente um
recado de como o cinema brasileiro deve comportar-se: voltar a ser uma
mensagem perigosa. Criar atritos, confrontos, resistências, incêndios,
junhos. Encarar os leões. Libertar o cinema da grade de ferro.
Reintegrar a vida e o cinema numa correia de transmissão. E Riocorrente acende essa chama.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário