PICICA: "O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam,
ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi a inauguração do "Templo de Salomão"
em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de
Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em
sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o
prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios
padrão-FIFA, se tem agora o equivalente na forma de templo "cristão".
Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um
evento político e comercial, mas algo mais profundo."
O Templo de Salomão e o Fim do Mundo
Os cavaleiros do apocalipse -- Vasnetsov |
O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam,
ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi a inauguração do "Templo de Salomão"
em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de
Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em
sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o
prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios
padrão-FIFA, se tem agora o equivalente na forma de templo "cristão".
Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um
evento político e comercial, mas algo mais profundo.
Nada disso é à toa: no momento em que uma expressão do cristianismo faz um novo e espetacular movimento no Brasil -- com repercussão pelo mundo todo --, isso envolveu justamente a edificação de sua nova sede. A morada, o habitat,
é central ao cristianismo desde sempre. Porque a diferença entre o
cristianismo primitivo e o institucional é a liberação que o primeiro
tinha em relação ao confinamento e, em sentido inverso, a dependência do
segundo em relação às edificações suntuosas. Isso é parte de uma
história importantíssima.
Como sabemos, o Cristianismo foi o bom encontro entre as tradições
heleno-romanas e judaicas, produzindo uma resultante nova, libertadora,
anti-imperial. Cristo e seus apóstolos pregavam nas ruas. E faziam uso
do léxico político: Igreja e assembleia são equivalentes na etimologia,
pois ambas vêm da palavra grega ekklesia, isto é, os encontros públicos nos quais os cidadãos apresentam demandas à pólis. Em Roma, o mesmo se chamava comicius.
O cristianismo, em sua luta anti-imperial, não tornou a política
religiosa, ao contrário, ela ativou a religião colocando-a em sintonia
com a realidade política existente.
As coisas mudam quando o Império Romano absorve o movimento que lhe
contestava mais agudamente. O cristianismo se torna parte da estrutura
imperial, em tempos que o velho culto público greco-romano não dava mais
conta de legitimar um Império em frangalhos. A partir daí, as
assembleias não encontram mais seu lugar na praça, nem nas reuniões
livres na clandestinidade, ao contrário: é em edifícios suntuosos que os
cristão passam a se reunir. Afinal, as próprias assembleias no Império
são representações feitas em basílicas: edifícios que substituíram as velhas ágoras colunatas, sedes por excelência das velhas assembleias de cidadãos livres.
Na falta de basílicas, o cristianismo se reunia em paróquias, palavra
que em grego significa "casa vicarial", isto é, "casa que substitui [uma
basílica]". Isso não é só simbólico: significa a passagem do
cristianismo da política para a economia. A organização cristã passa a
se dar, em toda parte, em termos econômico-administrativos (como bem
observa Agamben em o Reino e a Glória): "bispo" é a palavra
portuguesa que vem de "episkopo", administrador. A racionalidade da
casa, das regras absolutamente factuais e verticais que caracterizavam a
casa do mundo antigo passam, não à toa, a ordenar o cristianismo.
A passagem da praça pública para o ambiente doméstico cria, obviamente,
um cristianismo domesticado. Não é apenas uma nova forma de
físico-geográfica de culto, mas um realinhamento que implica em uma nova
prática. Se o mundo antigo é feito da dualidade entre a casa e a
cidade, a oikia e a pólis, ambas com ordens próprias,
complementares e, ao mesmo tempo, antagônicas, o mundo medieval é outro:
não há mais cidade, apenas os feudos que são, na prática, "casas
grandes" e a religião confinada -- a ordem econômica, enfim, triunfou,
com a política e o direito reaparecendo apenas nas fissuras desse
sistema.
Talvez por isso o fato mais relevante em matéria de cristianismo foi,
vejamos só, as reformas cristãs católicas do século 19º e 20º e o
fortalecimento de um modelo pastoral que, mais tarde, desembocou na
teologia da libertação. Pela primeira vez desde o Concílio da Niceia se
discutiu o embate entre a "hierarquia" -- a instituição -- e os fiéis --
em obra social, espalhados em comunidades eclesiais e pastorais. Tal
como como o cristianismo primitivo, e fiéis ao evangelho, misticismo e
política passaram novamente a andar de mãos dadas. Daí a reação,
violentíssima, da própria hierarquia católica e do protestantismo,
contra isso. Do novo catolicismo conservador à teologia da prosperidade,
dos tele-evangelistas americanos e da Igreja Universal, se fez de tudo
contra isso.
Mas isso não é uma história de infidelidade a uma suposta tradição cristão pura: como bem observou Deleuze ao comentar D.H. Lawrence,
nem só dos evangelhos se fez o cristianismo, ele também se fez do
apocalipse, o fecho curioso e antitético da trama. E se os evangelhos
são uma narrativa sobre fatos históricos, ou pretensamente, o apocalipse
é profecia pura, isto é: projeção. E a projeção, mais do que a
subjetivação ou a objetificação, é a parte realmente "ideológica" de uma
narrativa. Ela visa tão somente a influenciar, ela é pura prescrição. É
no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de
messias que chama os outros de "irmãos", ele se torna um soberano
vingativo que irá decidir sobre a vida e a morte absolutas. O horizontal
se torna vertical, mantendo uma contradição em termos tão absurda
quanto aquela havida entre Paulo e Pedro.
O apocalipse é central no pensamento ocidental. É lá que nasce uma
filosofia do juízo [final], uma filosofia baseada no julgamento -- logo,
incapaz de aceitar uma diferença intensa para supô-la apenas na
extensão e, aliás, pela ação de uma força externa, transcendente e
implacável. Só a autoridade suprema, que combina também o império e o
poder, pode diferenciar o joio do trigo, isto é, pode criar, cindindo e
hierarquizando, negando a singularidade.
Voltando ao Brasil, não é à toa que a teologia da prosperidade 2.0
recorra ao Templo de Salomão, uma imagem tão central no texto do
apocalipse: é ali que se julga de maneira final, separando os bons que
habitaram o céu (a cobertura dos prédios) e o inferno (as prisões), de
uma maneira absolutamente utilitarista, fluídas, na qual quem está em
cima estará sempre em risco de queda e, por outro lado, os caídos
poderão ascender -- desde que paguem continuamente o seu naco para a
intermediadora divina, a Igreja e seu mandatário maior, o bispo Edir
Macedo.
Obviamente, o modelo da IURD, gigantesco, é uma absurdidade para o
Sistema tal como ele existe. Mas o fato de, mesmo assim, ela prosperar e
crescer, sendo um sucesso financeiro e um fenômeno político capaz de
amarrar as principais lideranças políticas, significa uma coisa:
trata-se de um arcaísmo reservado pelo mesmo sistema para, caso for
preciso, vir à tona. No momento em que a democracia liberal se torna um
discurso cada vez mais frágil, sendo cada vez menos capaz de administrar
a dívida e organizar o trabalho, a possibilidade do discurso
"fundamentalista cristão", na forma da teologia da prosperidade, se
tornar o rótulo da vez do Sistema é cada vez mais real: além de sua
viabilidade econômica em si, ele se torna um gigantesco ativo que
poderá, tão logo, ser bem mais que um agregador de votos imediato.
O cristianismo, em sua exacerbação, se descristianiza e desevangeliza, a
subsunção ao juízo final elimina o Cristo e deixa apenas a dor da Cruz.Fonte: O Descurvo
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