agosto 03, 2014

"Deus [ou, a Natureza]", by Rafael Trindade

PICICA: "Houve uma época em que espinosismo era sinônimo de ateísmo, mas em vão acusaremos Espinosa de ateu. Sua principal obra, Ética, dedica toda a primeira parte na definição do que é Deus e qual sua essência. Contudo, a natureza divina para Espinosa é muito particular e difere absolutamente das definições judaico-cristãs de seu tempo."


Deus [ou, a Natureza]


 
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Houve uma época em que espinosismo era sinônimo de ateísmo, mas em vão acusaremos Espinosa de ateu. Sua principal obra, Ética, dedica toda a primeira parte  na definição do que é Deus e qual sua essência. Contudo, a natureza divina para Espinosa é muito particular e difere absolutamente das definições judaico-cristãs de seu tempo.

Deus não está separado do mundo como um grande legislador. Não existe uma entidade criadora do mundo que agora o observa à distância, julgando-o e decidindo seu destino final. Esta visão é exageradamente antropomórfica e confessa uma ingenuidade para entender a essência das coisas. Por uma visão utilitarista, somos levados a crer que a natureza, e nós mesmos, temos um objetivo a ser cumprido, e concluímos que fomos criados com um destino a se cumprir. Sendo assim, achamos que um ser que nos criou à sua imagem e semelhança tem certo desígnios para nós. Mas Espinosa argumenta que se fosse dada a um triângulo a chance de definir Deus, este o faria dizendo que Ele possui três lados e a soma de seus ângulos internos resultam em 180 graus. E assim o homem, por ignorar as causas de seu conhecimento, o faz: Deus vê tudo, ouve tudo, sabe tudo, pode tudo e nos deu mandamentos que não podem ser quebrados.

Isto está de todo errado. Deus é o mundo, Deus é a Natureza. São dois nomes para uma única e mesma coisa. Ele não é exterior, ele é a causa interior de tudo que existe. Deus é a causa da essência e da existência de tudo, a causa imanente das coisas, não transitiva, ou seja, continua agindoem mim. Deus não gera o mundo por livre vontade, ele é o mundo por pura necessidade de sua essência. Assim como uma ponte que se sustenta por si mesma, achamos que existimos por conta própria; mas Deus é o conjunto de leis e a própria matéria que nos sustenta.

Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência” (Espinosa, Ética I), esta é a definição formal de Deus, ou nada existe ou existe algo necessariamente infinito e nada mais. O ser, a existência, é puro ato de sua afirmação. O infinito, em todas as suas modalidades é o que constitui sua essência. A causa incausada, origem de si mesmo. Ele não criou o mundo, ele existe por sua própria natureza que envolve a capacidade de existir. Esta substância infinita manifesta-se de várias formas, mas conhecemos duas delas apenas: extensão e pensamento.

Visão ingênua de Deus como um arquiteto
Visão ingênua de Deus como um arquiteto

Como Deus é infinito, nada pode existir fora dele. Portanto fazemos parte de sua natureza. Somos modos da subtância divina, limitados por extensão e tempo. Parte da potência divina se afirma em mim. Eu afirmo o infinito através de minha finitude. O Mundo de Sofia (de Jostein Gaarder) tem um capítulo sobre Espinosa, e assim nos define em relação a Deus: “Deus não é um ‘mestre de marionetes’, que mece os fios e determina o que sucede. Um ‘mestre de marionetes’ dirige fantoxes de fora e é assim a ‘causa exterior’. Mas Deus não dirige o mundo deste modo. Deus governa o mundo por meio das leis da natureza”
Não somos marionetes controlados pelos caprichos divinos, somos como que o dedo de um ser vivo e infinitamente infinito” – Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia
Nossos atos individuais não são nada mais que a expressão em ato da potência da substância divina. Deus não nos comanda, ele é a própria essência de nossa potência de pensar e agir. Ele não comanda, ele é a potência de criação e manutenção do universo. A própria visão da criação divina como obra de um arquiteto é ingênua: Deus não pode escolher a seu bel prazer entre esta ou aquela disposição, ele age necessariamente e de apenas uma maneira que reflete sua perfeição.

A beleza deste pensamento, entre tantas implicações, está em novamente inocentar o mundo e a nós mesmos. Somos perfeitos porque um ser sumamente perfeito faria a si mesmo da melhor maneira possível (e também porque não há outros critérios de comparação). Estamos mergulhados na natureza divina, nadando naquilo que necessariamente é e não poderia ser de outro modo. Não falta nada ao mundo, nem ele está buscando perfeição. Isso vale para nós: não há pecados nem imperfeições; cabe então, dentro de nossa natureza finita, encontrar outras naturezas que  se ajustem, se harmonizem com a nossa, aumentado nossa potência.

Vivemos, agimos e pensamos em Deus. Vivendo de acordo com a potência em nós, agimos de acordo com as leis de Deus. Somos parte da causa ativa de uma entidade divina, esta afirmarção é Seu ato criador. Daí vê-se a incoerência de acusar Espinosa de ateísmo (entre outras coisas). Seu panteísmo expande Deus a todos os cantos. Sua perfeição pode ser encontrada em toda parte. Apenas um inimigo do livre-pensamento cometeria tal injustiça, distorcendo suas ideias. Apenas uma visão ignorante da correta natureza de Deus descartaria tal explicação por uma antropomórfica.

A Criação de Adão, Michelangelo. Visão antropomórfica de Deus
A Criação de Adão, Michelangelo. Visão antropomórfica de Deus.

Fonte: Razão Inadequada

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