PICICA: "Houve uma época em que espinosismo era sinônimo de ateísmo, mas em vão acusaremos Espinosa de ateu. Sua principal obra, Ética, dedica toda a primeira parte na definição do que é Deus e qual sua essência. Contudo, a natureza divina para Espinosa é muito particular e difere absolutamente das definições judaico-cristãs de seu tempo."
Deus [ou, a Natureza]
Houve
uma época em que espinosismo era sinônimo de ateísmo, mas em vão
acusaremos Espinosa de ateu. Sua principal obra, Ética, dedica toda a
primeira parte na definição do que é Deus e qual sua essência. Contudo,
a natureza divina para Espinosa é muito particular e difere
absolutamente das definições judaico-cristãs de seu tempo.
Deus não está separado do mundo como um
grande legislador. Não existe uma entidade criadora do mundo que agora o
observa à distância, julgando-o e decidindo seu destino final. Esta
visão é exageradamente antropomórfica e confessa uma ingenuidade para
entender a essência das coisas. Por uma visão utilitarista, somos
levados a crer que a natureza, e nós mesmos, temos um objetivo a ser
cumprido, e concluímos que fomos criados com um destino a se cumprir.
Sendo assim, achamos que um ser que nos criou à sua imagem e semelhança
tem certo desígnios para nós. Mas Espinosa argumenta que se fosse dada a
um triângulo a chance de definir Deus, este o faria dizendo que Ele
possui três lados e a soma de seus ângulos internos resultam em 180
graus. E assim o homem, por ignorar as causas de seu conhecimento, o
faz: Deus vê tudo, ouve tudo, sabe tudo, pode tudo e nos deu mandamentos
que não podem ser quebrados.
Isto está de todo errado. Deus é o mundo,
Deus é a Natureza. São dois nomes para uma única e mesma coisa. Ele não
é exterior, ele é a causa interior de tudo que existe. Deus é a causa
da essência e da existência de tudo, a causa imanente das coisas, não
transitiva, ou seja, continua agindoem mim. Deus não gera o mundo por
livre vontade, ele é o mundo por pura necessidade de sua essência. Assim
como uma ponte que se sustenta por si mesma, achamos que existimos por
conta própria; mas Deus é o conjunto de leis e a própria matéria que nos
sustenta.
“Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência”
(Espinosa, Ética I), esta é a definição formal de Deus, ou nada existe
ou existe algo necessariamente infinito e nada mais. O ser, a
existência, é puro ato de sua afirmação. O infinito, em todas as suas
modalidades é o que constitui sua essência. A causa incausada, origem de
si mesmo. Ele não criou o mundo, ele existe por sua própria natureza
que envolve a capacidade de existir. Esta substância infinita
manifesta-se de várias formas, mas conhecemos duas delas apenas:
extensão e pensamento.
Como Deus é infinito, nada pode existir
fora dele. Portanto fazemos parte de sua natureza. Somos modos da
subtância divina, limitados por extensão e tempo. Parte da potência
divina se afirma em mim. Eu afirmo o infinito através de minha finitude.
O Mundo de Sofia
(de Jostein Gaarder) tem um capítulo sobre Espinosa, e assim nos define
em relação a Deus: “Deus não é um ‘mestre de marionetes’, que mece os
fios e determina o que sucede. Um ‘mestre de marionetes’ dirige fantoxes
de fora e é assim a ‘causa exterior’. Mas Deus não dirige o mundo deste
modo. Deus governa o mundo por meio das leis da natureza”
Não somos marionetes controlados pelos caprichos divinos, somos como que o dedo de um ser vivo e infinitamente infinito” – Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia
Nossos atos individuais não são nada mais
que a expressão em ato da potência da substância divina. Deus não nos
comanda, ele é a própria essência de nossa potência de pensar e agir.
Ele não comanda, ele é a potência de criação e manutenção do universo. A
própria visão da criação divina como obra de um arquiteto é ingênua:
Deus não pode escolher a seu bel prazer entre esta ou aquela disposição,
ele age necessariamente e de apenas uma maneira que reflete sua
perfeição.
A beleza deste pensamento, entre tantas
implicações, está em novamente inocentar o mundo e a nós mesmos. Somos
perfeitos porque um ser sumamente perfeito faria a si mesmo da melhor
maneira possível (e também porque não há outros critérios de
comparação). Estamos mergulhados na natureza divina, nadando naquilo que
necessariamente é e não poderia ser de outro modo. Não falta nada ao
mundo, nem ele está buscando perfeição. Isso vale para nós: não há
pecados nem imperfeições; cabe então, dentro de nossa natureza finita,
encontrar outras naturezas que se ajustem, se harmonizem com a nossa,
aumentado nossa potência.
Vivemos, agimos e pensamos em Deus.
Vivendo de acordo com a potência em nós, agimos de acordo com as leis de
Deus. Somos parte da causa ativa de uma entidade divina, esta
afirmarção é Seu ato criador. Daí vê-se a incoerência de acusar Espinosa
de ateísmo (entre outras coisas).
Seu panteísmo expande Deus a todos os cantos. Sua perfeição pode ser
encontrada em toda parte. Apenas um inimigo do livre-pensamento
cometeria tal injustiça, distorcendo suas ideias. Apenas uma visão
ignorante da correta natureza de Deus descartaria tal explicação por uma
antropomórfica.
Fonte: Razão Inadequada
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