PICICA: "Por
mais que hoje, quarenta anos depois, as sequências famosas que se tornaram
escândalo à época do lançamento não causem tanto furor, a intensidade dramática
e a beleza impregnadas em quase todas as cenas continuam garantindo um lugar
para O Último Tango em Paris na
eternidade da sétima arte."
O Último Tango em Paris
Sinopse. Drama erótico. Aos 20 anos, a parisiense Jeanne visita um apartamento com o objetivo de alugá-lo. Em seu interior encontra Paul, americano com o dobro de sua idade, a quem já havia visto andando solitário pelas ruas. Na mesma tarde os dois se tornam amantes, e Paul termina por alugar o imóvel, para que se encontrem e deixem lá fora o resto do mundo, proibindo-a inclusive de saber-lhe o nome. Fora das paredes do apartamento, o mundo dos dois é composto pelo namorado cineasta de Jeanne, Tom, que irá pedi-la em casamento, e a esposa de Paul, que o traía e acabara de cometer suicídio.
Comentário. Foi após este filme que Marlon Brando prometeu a si mesmo jamais se entregar tanto a um papel. Em sua autobiografia, conta ele que saiu das filmagens de O Último Tango em Paris (The Last Tango in Paris, França/Itália, 1972) “emocionalmente destruído”, e decidido a “nunca mais sofrer assim”. Da mesma forma, a estreante protagonista Maria Schneider garantiria depois que o filme foi “o único arrependimento de sua vida”, e que teria se sentido estuprada e humilhada pelo diretor Bernardo Bertolucci e por Brando, chamando o primeiro de “gângster e cafetão”. A reação ao filme, à época do lançamento, não foi menos radical. Embora alguns críticos alegassem ser este o filme esperado por todos “há muito tempo, desde que os filmes existem” (afirmação com a qual o público deve ter concordado, pois lotou os cinemas que exibiam a obra), ou que ele teria mudado a face do cinema, em alguns países o filme seria proibido. Na própria Itália, país de seu realizador, O Último Tango... só iria ser exibido sem cortes quinze anos após seu lançamento, e o diretor sentenciado à prisão; no Brasil, sete anos depois; no Chile, trinta. (Fontes deste parágrafo: Brando: Canções que minha mãe me ensinou, de Marlon Brando e Robert Lindsey, e Wikipédia).
Mas o filme é isso tudo? É. Por mais que hoje, quarenta anos depois, as sequências famosas que se tornaram escândalo à época do lançamento não causem tanto furor, a intensidade dramática e a beleza impregnadas em quase todas as cenas continuam garantindo um lugar para O Último Tango em Paris na eternidade da sétima arte. A terrível amargura do personagem Paul, que acabara de perder o amor de sua vida de forma brutal e, pior, de descobrir que jamais conhecera de fato a mulher com quem vivera tanto tempo, é exposta precisa e abertamente pelas lentes de Bertolucci e do fotógrafo Vittorio Storaro. Os movimentos sinuosos da câmera, as cores quentes e as sombras do apartamento, seja o alugado, seja o do hotel, atenuam cada nuance da face de Brando, esse sim um escândalo de ator. Ainda em sua autobiografia, ele disse que jamais compreendera exatamente o que Bertolucci quis dizer com seu filme, e que talvez nem o próprio Bertolucci soubesse. Provavelmente porque não há apenas uma coisa a ser dita, tendo O Último Tango... a peculiaridade de dizer coisas diferentes a diferentes pessoas.
Trata-se de uma história de amor, de apaixonada e violenta entrega ao outro e da vontade/necessidade de se abrir, de expor o que há no interior do indivíduo para, quem sabe, expurgar a dor abafada lá dentro. Exposição pode ser a palavra chave do filme (e do cinema em si), e para isso Bertolucci – que escreveu o roteiro com Franco Arcalli e Agnes Varda – não se furtou em descer aos infernos do relacionamento a dois para expor-lhe as vísceras. Diálogos chulos, grosseiros, obscenos, junto às cenas de sexo (que, segundo Brando, Bertolucci queria que fosse explícito, mas ele recusou) desprovidas de delicadeza, mas mostradas com fartura dela, na fotografia e na jazzística trilha sonora do argentino Gato Barbieri, acabam se tornando um contraste revelador.
O olhar de Bertolucci parece ser, como o do personagem Tom, obcecado em registrar cada instante do objeto amado e da vida que o cerca. Olhar de quem busca uma verdade e só nela encontra a beleza. O relacionamento entre homem e mulher, assim, quando desprovido “do resto do mundo lá fora”, ou seja, de identidades, responsabilidades, explicações e justificativas, seria isso o que se vê dentro do quarto. Protegidos pelo anonimato, Paul e Jeanne se permitem serem infantis, sujos, românticos e até falarem a verdade, ainda que disfarçada de mentira, como faz Paul ao narrar a infância na fazenda (em sequência improvisada, onde Brando está falando realmente de sua infância – os sapatos com cheiro de bosta de vaca também estão na autobiografia). Talvez por isso o interesse, para Jeanne, se acabe, no momento em que Paul decide enfim se abrir e falar de sua vida, antes de dançarem o último tango do título. A verdade social e a verdade da essência não suportariam conviver sob o mesmo teto.
O filme é puro sentimento. Solidão, decepção, sarcasmo, melancolia e desejo iluminam cada tomada. Mesmo nas cenas das filmagens de Tom, que se estendem mais do que o necessário. O Último Tango... deve ter dado muito prazer a seu realizador, pela possibilidade de invadir a intimidade de um casal e manipulá-lo, contar-lhes a história da maneira mais bela e verdadeira que lhe seria possível. Muito se tentaria, depois desse filme, repetir essa visão crua e poética da paixão. Filmes como Perdas e Danos, 9 ½ Semanas de Amor e até o brasileiro Eu Te Amo chegaram mais ou menos perto. Alguns, como 9 Canções, utilizando mesmo o sexo explícito, como Bertolucci queria. Mas, até agora, O Último Tango em Paris permanece, por sua originalidade, ousadia e sensibilidade, insuperável.
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