PICICA:
"Essa conversa de "esquerda caviar" é o cúmulo da infantilização do debate político-ideológico."
Esquerda Caviar, Direita Fast Food
Junk Food People -- Joe Maccarone |
Essa conversa de "esquerda caviar" é o cúmulo da infantilização do debate político-ideológico. E eis que agora ela voltou à cena,
com o termo sendo empregado pelo douto magistrado paulista, e
professor, Marcelo Matias: ocorreu, pasmem, na decisão que negou a
soltura de Fábio Hideki e Rafael Lusvargh, os dois ativistas presos sob
falsa acusação de porte de explosivos em uma manifestação -- falsidade
que nem a Folha de São Paulo, em editorial, ousou discordar.
Mas voltemos
ao nosso pálido espectro. Embora cá no Brasil a ideia de "esquerda
caviar" tenha sido, recentemente, popularizada por Rodrigo Constantino
-- um jovem inseguro e "liberal", que aparece aqui neste vídeo,
levando uma surra homérica num debate com Ciro Gomes --, ela tem uma
origem mais antiga. Aparece, segundo se sabe, na França, saindo da boca
dos detratores de 1968, os mesmos que atacariam logo mais o governo
Mitterrand -- contra o qual se voltavam, sobretudo, por sua política
interna pró-direitos civis e direitos humanos: mas isso vinha tanto dos
direitistas fanáticos quanto da esquerda (euro)comunista, a qual não se
conformava com os desvios "burgueses" e a política "mole" do líder
francês. Contra a política praticamente neocolonial mantida pelos
socialistas em África, nem um pio.
O deboche da "esquerda caviar" sempre foi uma espécie de pacto Ribbentrop-Molotov das bravatas: unia fascistas e stalinistas na mesma estranha, e boçal, aliança. O
termo, apesar do tom aparentemente bem humorado, esconde uma visão
persecutória e criminalizadora: sempre se voltou a deslegitimar os
setores da esquerda democrática, libertária e adepta da virada cultural
dos anos 1960, vinculado-os ao fantasma de sua eventual origem de classe
-- o que nem sempre é verdade, aliás.
E também atentava contra algo muito presente no pós-68: o desejo de ter, o desejo de desejar, atacado pela falácia implícita na fórmula esquerda coerente = estar na/cultuar a pobreza. Esses novos esquerdistas seriam "desocupados" que abraçam causas que não lhes dizem respeito, cabendo aos trabalhadores se afastar deles para "não se meterem em problemas", "não entrarem na onda de gente louca, inconsequente e irresponsável"
E também atentava contra algo muito presente no pós-68: o desejo de ter, o desejo de desejar, atacado pela falácia implícita na fórmula esquerda coerente = estar na/cultuar a pobreza. Esses novos esquerdistas seriam "desocupados" que abraçam causas que não lhes dizem respeito, cabendo aos trabalhadores se afastar deles para "não se meterem em problemas", "não entrarem na onda de gente louca, inconsequente e irresponsável"
Não é de
se espantar que esse mesmo discurso tenha unido a direita aos
stalinistas, ou equivalentes, naquele momento e ainda hoje. A ditadura
do economicismo em suas faces direita e esquerda. O reaparecimento do
espectro da "esquerda caviar" foi visto, recentemente, quando alguns
velhos amantes do eurocomunismo no nosso país, como Mino Carta e Walter Maierovicth,
se usaram dele para desqualificar os defensores da não-extradição do
ativista italiano Cesare Battisti -- extradição a qual era reclamada
pelo Estado italiano, que o condenou anos antes, com poucas provas, num
clima da caça às bruxas lamentável. Entre a perseguição italiana e o
refúgio no Brasil, coincidência ou não, Battisti esteve abrigado por
décadas na França, enquanto vigeu a doutrina Mitterrand.
Do ponto de vista do seu uso pela direita neoliberal, temos o livro de Constantino que nem na sua grande criação
conseguiu ser original: a reedição da "esquerda caviar", pronta à
pretensa desqualificação pública de setores acadêmicos e
médio-classistas que atacam o "pensamento único", os quais seriam
contrastados com a massa "trabalhadora", "de bem" e "boa pagadora". E
isso se transforma até mesmo em fundamento judicial para manter
ativistas presos: ora, se são uma "esquerda caviar", não merecem perdão
ou devido processo legal. O deboche -- o humor duvidoso empregado contra
minorias, oprimidos e fragilizados -- surge como uma hiena cumprindo
sua função punitivista.
Se
houvesse alguma honestidade nessa falácia, se isso se tratasse de um
auto-engano ou desconhecimento teórico, poderíamos citar Reich e sua
lembrança preciosa de que libertação e opressão não são uma pontos
objetivos, mas sim itens ligados à posição desejante, pois não é o fato
objetivo da carência que impele nenhuma revolução: fosse assim, os
trabalhadores fariam greve sempre, ou os pobres sempre se rebelariam, e
os ricos estariam todos satisfeitos. Ou que não é errado ter bens de
consumo, ter ou não ter algo de sua época, é fruto de escolhas
pragmáticas e não-egóicas, não uma questão moral -- inclusive porque se
fosse, nenhum anticomunista poderia utilizar serviços que dependem de satélite, uma invenção socialista. Mas, volto ao ponto levantado, a história da "esquerda caviar" não é séria.
A falácia disso reside em várias coisas: se ser de esquerda é incoerente para quem não é pobre ou trabalhador, por que então fazer greves, questionar o poder ou se rebelar nunca lhes foi permitido? E como a origem de classe de parte da nova esquerda deslegitimaria, a priori, sua voz em relação a qualquer tema? E quem é pobre e deseja desejar, como fazer? E por que alguém que come caviar precisa se sentir satisfeito com a sociedade em que vive? Ou, afinal de contas, por que não podemos comer, ou desejar, caviar?
A falácia disso reside em várias coisas: se ser de esquerda é incoerente para quem não é pobre ou trabalhador, por que então fazer greves, questionar o poder ou se rebelar nunca lhes foi permitido? E como a origem de classe de parte da nova esquerda deslegitimaria, a priori, sua voz em relação a qualquer tema? E quem é pobre e deseja desejar, como fazer? E por que alguém que come caviar precisa se sentir satisfeito com a sociedade em que vive? Ou, afinal de contas, por que não podemos comer, ou desejar, caviar?
A coerência
de uma esquerda não se mede pela origem de classe, hábitos em si ou
trejeitos que possa ter, mas sim pela sua coragem, capacidade e força
para assumir, de um bom grado, muitas dores que permeiam nossa sociedade
e lutar para pôr fim a elas. Lutar pelos negros sem ser negro, lutar
pelas mulheres sem ser mulher, lutar pelos estudantes apesar de ser
estudante. Não, não há nenhum problema em não ser egoísta,
não temos porque ser vítimas dessa má consciência primária. Lute por
Hideki porque ele lutou por você -- o que é mais pura verdade.
Mas o que essa nova direita teria a nos oferecer senão, para manter aqui as referências culinárias, um grande fast food:
essas pastas de gordura, pseudo-carne, sódio e açúcar prontas a
serem devoradas rapidamente -- para que possamos, afinal, trabalhar --,
nos fazendo a um só tempo diabéticos, hipertensos, com as veias
entupidas, obesos, obedientes e ansiosos. Escravizados por uma comida
cujo gosto simplório só agrada, em verdade, ao paladar infantil ou
infantilizado. Combustível perfeito para nos tornar seres bovinos no
comportamento e na aparência, embora sem direito à mesma dieta saudável
que os bois têm nos pastos. E o que a esquerda da realpolitik tem a dizer senão que é prudente se aliar a isso?
Fiquemos com
o caviar, os bons vinhos, a boa comida, a arte, a literatura, o devido
processo legal, os direitos civis e os sonhos -- sabendo que tudo isso é
bom, mas melhor ainda se repartido. Contra o rebaixamento dos gostos,
da estética, da linguagem, enfim, esse mundinho pequeno, kitsch e
desprezível no qual nos querem prender -- que no fim das contas, é a
verdadeira prisão. Esquerda caviar sim, com muito orgulho: boa comida
não entope artérias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário