[ Amálgama ]
Lewis Carroll e seu clássico
por Ana Al Izdihar — Este é o primeiro de três artigos que irei publicar no Amálgama a respeito de Alice no país das maravilhas (o livro e seu autor Lewis Carroll), Tim Burton e seu estilo, e sua adaptação cinematográfica de Alice, prevista para ser lançada em fevereiro de 2010.
Não é minha intenção determinar uma interpretação de Alice, mas simplesmente expor alguns aspectos que acho importante ressaltar para que possamos entender um pouco melhor essa estória fascinante. Aspectos esses que usarei para analisar a vindoura obra de Burton, fazendo paralelos e contrapontos. Até porque esse clássico de Carroll tem sido analisado, destrinchado, esculhambado, reduzido por muitas pessoas – entre elas, acadêmicos brilhantes, amantes de literatura, mas também curiosos, falsários, sensacionalistas… E como ainda não me aprofundei tanto quanto os acadêmicos brilhantes e não sou nenhum pouco sensacionalista, compartilho minha leitura simples e objetiva de professora de literaturas (incluindo a inglesa) e fã convicta de Carroll.
As controvérsias a respeito da narrativa da menina Alice que cai num buraco de coelho e vai parar numa terra maluca, vivendo as mais fantásticas aventuras, infelizmente têm sido a respeito de decidir se Carroll era viciado em ópio (um maluco) ou pedófilo ou não. E que a narrativa estranha em que Alice está sempre lidando com seres que a perseguem, seria a descrição de uma mente sado-maso-pedófila.
Estas discussões são muitas vezes baseadas em “achismo” ou em teorias no mínimo bastante reducionistas e com um olhar do “hoje” e não do “ontem”. Sugiro nos determos principal e primeiramente nos limites do texto, evitando as fofocas (jamais comprovadas, a não ser as que foram já desmascaradas como inverdades) pessoais. A fim de ilustrar o aspecto dos olhares em diferentes épocas – para que mais adiante entendam minhas colocações sobre Carroll e sua obra –, lembremo-nos de como os exploradores europeus do século XVI viam o Novo Mundo e como agiam nele: era senso comum que estas terras lhes pertenciam, tinham o direito de explorá-las e matar os indígenas que não concordassem com a dominação, mesmo havendo uma minoria de pessoas que pronunciava ser contrária à matança dos nativos, por exemplo. Ou ainda de como daqui a alguns anos nós nos perguntaremos indignados de como tínhamos coragem de usar animais em experiências científicas no passado; hoje em dia ainda há os que defendem essa prática, em detrimento de uma minoria (crescente, ainda bem) que a vê abominável e não mais necessária.
Lewis Carroll não precisa de minha defesa, mas acho interessante ressaltar alguns fatos biográficos para tentar desfazer essa confusão maléfica que chega a afetar um pouco a apreciação de sua obra por umas cabecinhas mais impressionáveis. Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) foi criado numa família grande e tinha oito irmãos mais novos. Tinha desde cedo o costume de conviver com crianças e contar-lhes estórias. Era tido como uma pessoa tímida, mas de gênio inventivo. Professor de matemática em Oxford, criou jogos e livros com o intuito de estimular o pensamento matemático em crianças. Dodgson foi ordenado diácono, mas não prosseguiu sua carreira de padre por ter uma incurável gagueira, o que seus superiores na igreja achavam ser um obstáculo intransponível para a função paroquial. Dizem seus contemporâneos que somente deixava de gaguejar quando conversava com crianças, uma vez que elas se sentiam encantadas por seus jogos e estórias e ele assim se sentia à vontade.
A estória de Alice foi primeiramente um conto de fadas (palavras de Carroll) contado oralmente a três filhas de um amigo (Lorina, Alice e Edith Liddell) em seus passeios com a família. Alice parecia ser a mais entusiasmada com a narrativa e teria sido ela a pedir que ele a passasse para o papel, assim ela poderia reler em casa. Carroll foi fazendo isso, ao longo dos anos, mesmo depois de perder o contato com Alice, e quando lançou o livro já havia uma série de adaptações e simbolismos intencionais. O fato é que a estória hoje nos parece totalmente sem nexo, mas se entendermos que tudo o que está ali tem uma referência real à época e ao cotidiano da verdadeira Alice, essa sensação de estranheza se esvai. Carroll coloca na narrativa várias referências ao aprendizado das meninas, por exemplo: fatos históricos como a guerra das rosas na Inglaterra, representado na cena das cartas falantes pintando as rosas brancas de vermelhas no jardim da Rainha de Copas. Ou ainda o famoso gato que ri (Cheshire Cat), que seria mais provavelmente uma representação dos leopardos representados no brasão da família Liddell. E não foi por acaso que, na versão final, o autor tenha feito várias inclusões não contadas às meninas Liddell – tinha a intenção de atingir o público adulto.
Outros dois aspectos muito importantes a ressaltar na estória de Alice são: o humor inglês e a maneira como as crianças da época (pelo menos as inglesas) apreciavam histórias fantasiosas ao extremo, muito diferente das crianças “realistas” do século XX e XXI – observações estas feitas por Roger Lancelyn Green, editor e autor da introdução no livro Alice in Wonderland and Through the Looking-Glass na série The World’s Classics publicado pela editora Oxford. Ora, o humor inglês já é famoso por ser ácido e negro quando analisado por outras culturas e por isso causa estranheza em algumas pessoas. E é inegável a observação de Green a respeito da mudança no imaginário infantil. Isto posto, fica mais difícil insistir em saber se realmente as aventuras de Alice vinham da mente de um pedófilo doente, o que jamais foi comprovado.
Se lermos a narrativa sem esses pré-conceitos e com as notas de rodapé certas, poderemos apreciar o primor de uma narrativa cheia de símbolos e que mostra o questionamento de uma criança diante de um mundo que para ela não faz nenhum sentido. E não é assim que uma criança se sente quando começa a descobrir que o mundo adulto não é perfeito e que a sua mente simples não concebe suas contradições, imperfeições e maluquices? E qual criança nunca falou com os bichos, com seres que só ela via, ou nunca inventou estórias misturadas com as estórias dos livrinhos lidos em casa? Se você se lembra de sua infância, deve saber que isto é verdade. E por isso também os adultos podem apreciar Alice no país das maravilhas: por ver ali sua própria infância (se é que não foi corrompida pelos “playstations” da vida moderna) e ver seus filhos, sobrinhos e alunos.
[ imagens:
- Lewis Carroll
- ilustração de Alice por Arthur Rackhan
- página facsimile do livro ]
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