Loucura - Foi ao ar na noite de ontem, dez dias depois das comemorações do Dia Mundial de Saúde Mental, vinte dias depois da Marcha a Brasília por uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, o Profissão Repórter, do Caco Barcelos, com o tema "Loucura". Há muitas leituras possíveis para o que se viu no programa. Na esteira da obra de Bakhtin, Holquist afirma que "o que vemos é governado pelo modo que vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos". Falo como militante da luta por uma sociedade sem manicômios.
Para mim, as chamadas para o programa foram marcadas pela suspeição de que não seria dessa vez que um veículo da mídia hegemônica iria se livrar da coerção do discurso da psiquiatria conservadora, ainda hegemônica no país. Somos poucos os psiquiatras que aderiram ao modelo preconizado pela reforma psiquiátrica brasileira. Poucos, mas sinceros. E não somos nós os convidados a discursar sobre os tratamentos dos transtornos psíquicos no Brasil, como fez o programa ao abrir um chat para dialogar com o chefe do serviço de psiquiatria do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
Aqui é preciso inferir que a sessão de eletrochoque mostrada no programa foi negociada, privilegiando um dos discursos dos modelos de atenção em saúde mental vigente no país. E não se iludam. Além dos conhecidos modelos manicomial e psicossocial, um terceiro tenta ganhar visibilidade: o da psiquiatria conservadora humanizada.
O mosaico de entrevistas da equipe de Caco Barcelos certamente satisfez gregos e baianos: a abertura dada ao movimento antimanicomial, de um lado; e o espaço oferecido ao que chamo, provisoriamente, de movimento manicomial humanizado; ambos sentiram-se contemplados em várias passagens do programa. Entretanto, é bom lembrar que existe uma ficção de que jornalismo não toma partido, mas as escolhas do programa de Caco Barcelos nos faz pensar que a produção de sentidos, geradora de efeitos na história, tem muitas das vezes um caráter perverso. Deixar de ouvir o outro lado da história, num mar de desinformação, gera efeitos colaterais, meu caro Caco Barcelos. O seu programa ficou nos devendo a audição de quem conhece a história do conservadorismo travestido de humanismo.
Discurso antimanicomial - Toda visão de mundo assume a forma de um discurso. Entre os existentes na nossa cultura, deixar de ouvir o discurso antimanicomial no chat do programa implica em escolhas ideológicas. Para um repórter plural como você, a unilateralidade não lhe cai bem. Entre os efeitos provocados pelo programa, estou certo de que os antimanicomiais irão entupir sua caixa de mensagens pedindo pela audição do outro lado da história, que você tão bem soube mostrar em ricas imagens e depoimentos.
Sucede que esses discursos exigem interpretações. A dos discursos autorizados por quem faz a luta antimanicomial não foi contemplada. Se ouvirmos apenas um dos sujeitos falantes desse universo de práticas contraditórias, a missão jornalística falhou.
Fiquei com a impressão de que, embora os entrevistados assumissem a narrativa de seus discursos e do lugar que ocupam na sociedade, o espaço real da narrativa do programa envolve sujeitos que dialogam num outro lugar. Que tal um programa onde esses dois discursos sejam confrontados? Imagens você já as tem. Discursos, idem. Falta a ousadia de ouvir os discursos interpretantes, cuja função é decodificar os sistemas que moldam na sociedade os indivíduos que dela fazem parte. No caso da loucura, um sistema de mais de 200 anos de existência foi moldando a sociedade a crer que lugar de doido é no hospício. Na contra-mão dessa visão fatalista, os antimanicomiais, afirmam, e juram de pés juntos, de que nossa civilização caducou e que uma outra é possível.
Se o discurso antimanicomial já não é mais negado por outros discursos da nossa cultura, e o seu programa "Loucura" é prova inconteste, salvo se houve censura, não faz sentido (ou faz) a ausência de um "antimanicomial" no bate-papo do chat do programa. Essa você ficou devendo à sociedade brasileira!
Um comentário:
É isso aí meu amigo, concordo plena e principalmente afetivamente. Assino em baixo, se me permites, me senti, mais uma vez, representado por minhas escolhas da vida. Eitcha seu Caco Barcelos!!!! Dívida é dívida ehm!
fernanda penkala (dos sinceros...)
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