fevereiro 08, 2010

O neomoralismo de Fernando Gabeira


Nota do blog: O fenônemo não é só fluminense. Cuidado com o neomoralismo que assola o país! Ainda não li uma declaração de voto em Marina "Traíra" Silva que não tenha a marca do moralismo mais fajuto, sobretudo dos apressadinhos que abandonaram o barco do PT, sob raciocínios falso-moralistas. O mais curioso é que alguns, no passado, estiveram próximo do Pecebão e, surpreendentemente, deixaram de lado a tese da "paciência revolucionária". Pior! Ficaram com a cara do Gabeira. Dorian Gray é fichinha para esses neo-moralistas de ocasião.

O neomoralismo como trunfo da direita nas eleições fluminenses

por Maurício Caleiro * – É lugar-comum ouvir, no Rio de Janeiro, que o estado “não dá sorte com políticos”. A afirmação condiz com a autocomiseração que se apossou do espírito de muitos fluminenses, a qual pode ser atribuída a uma série de fatores, desde o fim da Guanabara e a transferência da capital do país para Brasília, passando pelos muitos anos de crise econômica e decorrente decadência, e chegando, enfim, ao que alguns comentaristas afoitos, mais suscetíveis às manchetes da mídia do que à realidade de seu próprio cotidiano, chamam de “guerra civil”.

Com isso não se quer dizer que o Rio não seja uma cidade violenta nem que seus políticos não fiquem entre o ruim e o péssimo. O que ocorre é, em primeiro lugar, que a violência não é onipresente e ininterrupta como certas corporações midiáticas – que ignoram objeções metodológicas relevantes para a contabilidade criminal – querem fazer crer, com a evidente intenção de assegurar a manutenção de um alto poder de manipulação da opinião pública. E que tal escalada da violência urbana não se encontra dissociada de um movimento internacional de criminalização da pobreza, de inspiração neoliberal, o qual, dada a peculiar topologia urbana do Grande Rio, é em tal área metropolitana agravado.

Em segundo lugar, é altamente questionável se o nível dos políticos que atuam no estado do Rio de Janeiro efetivamente difere do da maioria dos demais políticos do país. Afinal, grandes e ilibadas figuras da política brasileira como Yeda Crusius (PSDB/RS), Jader Barbalho (PMDB/PA), José Roberto Arruda (DEM/SP), Arthur Virgílio (PSDB/AM) e Gilberto Kassab (DEM/SP) não pertencem à fauna política fluminense.

Claro está, porém, que a soma de baixa auto-estima – que, espera-se, esteja em processo de reversão devido a fatos novos como a revitalização de setores da indústria da região e a escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas – com a longa tradição que o udenismo de Carlos Lacerda (1914-1977) e Sandra Cavalcanti desfruta no estado torna o eleitorado fluminense particularmente suscetível às manifestações de neomoralismo que infestam a política brasileira atual, algumas das quais debateremos em breve.

Há de se considerar, ainda, que muitos consultores políticos alegam que o que antigamente denominava-se “nível de formação de um quadro político” – ou seja, a soma de formação educacional, nível de conhecimento de história e de teoria políticas, grau de convicção ideológica, leque de relações com diversos setores da sociedade e com entidades internacionais, e capacidade pessoal de comunicação de um determinado político – conta cada vez menos na era do marketing político e das grandes corporações telecomunicacionais e financeiras. É uma hipótese a ser devidamente analisada, embora confesse que, a princípio e a partir de uma visão estritamente pessoal, tenho minhas dúvidas.

Um político por demais volúvel
Há, porém, exemplos que a corroboram de maneira cabal. Tomemos como objeto de análise uma figura que há tempos tem sua trajetória política – oficial ou clandestina – ligada ao Rio de Janeiro: o hoje deputado Fernando Gabeira (PV/RJ).

Trata-se de um cidadão com um alto nível de preparo intelectual, profundo conhecedor de história e de teoria políticas, dono de um texto fluente e com traços pessoais distintivos – e de uma aguda capacidade analítica -, que já ocupava uma posição de algum destaque nos meios culturais cariocas – chefe do prestigioso setor de pesquisa do Jornal do Brasil, no período áureo do jornal – quando decide largar tudo e ingressar na luta armada.

Participa do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, é ferido, preso e torturado. Deixa o país como um dos 40 prisioneiros políticos trocados pelo embaixador da então chamada Alemanha Ocidental, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, sequestrado de forma espetacular pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).

Retorna do exílio com um novo feixe de preocupações políticas, que transcendem o foco exclusivo em temáticas marxistas – como luta de classes, “ditadura do proletariado” e o embate entre acumulação capitalista e exploração da força de trabalho – passando a privilegiar questões comportamentais, de gênero, ecológicas, de defesa de minorias (como prostitutas e transexuais) e de temas como a legalização da maconha. Torna-se, ao mesmo tempo, um misto de guru e celebridade da contracultura e escreve livros que venderam muito – embora tenha sido acusado de neles superdimensionar seu papel na luta contra a ditadura, diminuindo o de companheiros de luta.

Passado o impacto de sua volta à cena brasileira, aos poucos é obrigado a, num choque de realpolitik, retornar à política institucional – primeiro pelo PT, depois pelo PV, que ajudou a fundar. Torna-se, ao menos na aparência, um parlamentar algo sui generis, que vai ao Congresso pedalando uma bicicleta pelas ruas de Brasília e veste-se de forma mais inventiva do que seus pares.

Pois bem. Esse personagem que preenche praticamente todas as qualidades elencadas parágrafos acima como distintivas de um “quadro político de alto nível”, a partir de um determinado momento, por um misto de picuinhas e disputas pessoais, falta de espaço político e ambição individual, abandona os ideais de esquerda que durante uma vida defendeu e alia-se à pior direita, o que lhe abre imediatamente as portas – e as capas – da mídia corporativa acostumada a debochar de sua figura (e a ser por ele em seus livros ridicularizada). Em decorrência, vê-se elevado também à condição de ídolo de setores da classe média alta fluminense que sempre o rejeitou.

O neomoralismo como show eleitoral
O preço pago por esse “novo” Gabeira para ingressar no clube tucano-midiático foi a adesão ao neoudenismo (leia aqui a carta aberta que escrevi ao camaleônico político) . À mínima oportunidade, nosso herói, paladino da ética e dos bons costumes, ergue o dedo acusador contra os adversários. Às vezes, o resultado é, do ponto de vista midiático, fantástico, como no chilique contra o ex-presidente da Câmara Federal, Severino Cavalcanti (PP/PE) – lembram dele? –, que rendeu votos e vídeos reproduzidos à exaustão nas Globos e Vejas da vida.

Porém, da última vez deu chabu: após dias erguendo o famoso indicador inquisidor contra seus pares que torravam, sem o mínimo critério, suas cotas de passagens aéreas com familiares e quetais, Gabeira, na iminência de ser descoberto pelos sites de observação do Congresso – que vasculhavam as contas dos parlamentares, descobrindo a cada dia novos implicados no escândalo -, sobe ao palanque para, com o riso amarelo, admitir que ele não era a vestal que acostumara-se a encarnar: também tinha culpa no cartório e utilizara sua cota de passagens com viagens de parentes. Ou seja, suas diatribes e lições de moral públicas não passavam de um de falso moralismo.

Mas o paladino do neomoralismo não perdeu facilmente a pose, e ainda teve a cara de madeira de, no mesmo discurso, exaltar sua própria lisura em se auto-incriminar. Pessoa inteligente que é, Gabeira sabe que, para um eleitorado que reelege até Arruda após este derramar umas lágrimas de crocodilo, importa a performance, não o conteúdo. The show must go on.

Após concordar em silêncio com a legislação que restringiu o uso da internet nas eleições – indo contra tudo o que sempre defendeu em relação ao tema -, a última de nosso herói deu-se o mês passado: após comprometer-se com a candidatura presidencial de Marina Silva (PV/AC), resignando-se a sair como candidato ao Senado para viabilizar acordos no âmbito da eleição a governador do Rio de Janeiro, ele deu mostras de que vai voltar atrás. Deve candidatar-se ao governo numa chapa apoiada pelo DEM de Cesar Maia, o PPS do também cameleônico Roberto Freire (PE) e o PSDB de José Serra (SP), o candidato de Gabeira à Presidência. Ao menos se não mudar de ideia nos próximos dias – o que, dado seu retrospecto, não é nada difícil.

A propósito, um dado quase humorístico de tão inverossímil dessa nova decisão do candidato é a declaração de Gabeira de que apoiará “unicamente” Marina Silva – e não José Serra, que é o principal articulador e fiador da candidatura do senador verde ao governo. Acredite se quiser.

Cabe ao eleitor fluminense decidir se elege ou não Gabeira na companhia dessa turminha braba, seja ao Congresso nacional ou ao Palácio das Laranjeiras. Só não vale depois dizer que “O Rio não dá sorte com políticos”.

* Maurício Caleiro, Rio de Janeiro-RJ. Blog: cinemaeoutrasartes.blogspot.com.

Fonte: Amálgama

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