fevereiro 11, 2010

O carnaval classista de Salvador

Ivete "Cansei do seu Galo"
Foto postada em www.quintacategoria.com.br
Nota do blog: A crônica do carnaval da Bahia pelo poeta cordelista Barreto é o retrado cuspido e escarrado do apartheid a que são submetidos os soteropolitanos no período da maior festa popular brasileira. Com o capitalismo triunfante do carnaval comercial de Salvador, isso sim, Boris Casoy, é que é uma discriminação classista de merda!

CARNAVAL DE SALVADOR
comércio, camarotes e vaidades

Antonio Barreto, cordelista natural de Santa Bárbara-BA,
residente em Salvador.

Dei uma de jornalista

Em Salvador da Bahia

E fui consultar o povo

Pra comentar a folia

Que se chama Carnaval

Uma festa cultural

Que declina a cada dia.

Busquei a neutralidade

Sem fazer intervenção

Apenas eu transformava

Com muita dedicação

Tudo em versos de cordel

E anotava no papel:

Conforme vocês verão:

— O carnaval tá careca

E fingindo que tem trança !

Muitos a ganhar dinheiro

Engordando sua poupança

E o pobre do folião

Precisa de um dinheirão

Pra poder entrar na “dança”.

— O carnaval era público

Porém tornou-se privado.

Toda a espontaneidade

Acabou-se com o mercado

De gente gananciosa

Prepotente e vaidosa:

Um esquema bem fechado.

— Hoje o clima é de apartheid

Feito o Muro de Berlim.

De um lado o povo simples

E do outro Camarim:

Criação de uma elite

Que passou a dar palpite

E fazer coisa ruim.

— Agora ninguém me engana:

Já não podemos pensar

Neste Carnaval baiano

Como festa popular

Já que a praça, que é do povo

Tem agora um “Kartel novo”

Pra excluir, pra faturar !

— Já existe fazendeira

Empresário, explorador

Donos de rede de hotel

Gente vil, bajulador

Matando essa bela festa

Que o mundo inteiro atesta:

Carnaval de Salvador.

— No Recife prazenteiro

Não tem corda ou escravidão.

Ninguém paga pra brincar

Lá quem manda é o folião

Mas aqui em Salvador

Não há ética nem pudor:

Tudo é privatização.

— Os artistas e empresários

Que comandam o carnaval

Eu não vou citar os nomes

Dessa prole tão banal

Figuras tão conhecidas

Porém não comprometidas

Com o lado social.

— Em perfeito e alto astral

Fico com Moraes Moreira

Artista conceituado

Que enxergou a baboseira:

A ganância, a hipocrisia

Dessa gente da Bahia

Prepotente e ‘aberteira’.

— Vai morrendo a tradição

Da nossa rica cultura

Pouco a pouco os blocos-afros

Caem na “rua da amargura”

Porque a força do mal

Que comando o carnaval

Já domina a Prefeitura.

— O empresário fatura

Sem visar o social.

Já criou-se um apartheid

Nesse belo carnaval

Que em vez de ser do povo

Já pertence a esse novo

Megaesquema industrial.

— Na perda da tradição

Lá se vão o afoxé,

O sambinha, o ijexá,

A magia, o candomblé

Que perderam seu espaço

Para o tal do “pagodaço”

E a elite do axé.

— Logo eu estarei em Marte

Longe de tanta artimanha.

Veja agora que o Rei Mono

Não precisa ter mais banha !

O processo é político

De prefeito paralítico

Que só pensa em barganha.

— Cada um compra seu “lote”

No circuito Barra-Ondina

Monopolizando espaço

Que logo terá piscina !

Camarotes suntuosos

Dos artistas vaidosos

Cuja luz não me fascina.

— Aumentando a hipocrisia

Criaram os tais “cordeiros”

Pessoas submetidas

Aos blocos de interesseiros

Que fazem do pobre: escravos

E lhes dão alguns centavos

Para serem seus obreiros.

— Quem ousar cortar o mal

Da Máfia pela raiz

Logo será destruído

Vai ser mais um infeliz

Pois o “plano” é muito forte:

Eles sabem dar o corte

Porque são pessoas vis.

— Muitas cenas de mau gosto

São vistas à luz do dia

Em cima dos Camarotes

Onde rola a mordomia

Das grandes “celebridades”

As famosas “majestades”

Do Carnaval da Bahia.

— Mas também há folião

Que não tem discernimento

E acaba endeusando

Certo bando de ‘jumento’

Que faz música sem critério

Só leva o dinheiro a sério

Visando enriquecimento

— Cadê a preservação

Da cultura africana

Que muito contribuiu

Pra essa festa baiana?

Perdemos nossa beleza

E o critério, com certeza

Por causa da ratazana.

— Na voz dos ‘grandes artistas’

Desse nosso carnavá

Essa estória de dizer:

“ onde tem povo tô lá”:

Isso é mentira pura

Eles vão pela usura

De ganhar muito bambá !

— As ruas e avenidas

Estão sendo dominadas

Por blocos e trios elétricos

Das estrelas ”endeusadas”.

E os afoxés da gente

Raiz afrodescendente

Desfilam nas madrugadas.

— Não me venham com lambança

Ainda sou pipoqueiro

Folião independente

Não quero ser chicleteiro.

Tenho cérebro, não sou besta

(segunda nunca foi sexta !)

Tampouco sou pagodeiro.

— E da forma que prossegue

Essa louca trajetória

No futuro não se assuste

De um Carnaval sem glória

Que ficará registrado

E muito pouco lembrado

Nas páginas da nossa história.

— Os empresários têm manha

Pra matar a tradição...

Antes era o Carnaval

Festa da população

Hoje é tudo demarcado

Pelo tal Poder Privado:

Que se lasque o folião !

— Gosto mesmo é de Gerônimo

Tapajós, Ilê, Missinho

Luiz Caldas, Olodum

Dez mil vezes Armandinho

Botando pra rebentar

Trilhando Dodô e Osmar

Com Aroldo, André e Betinho.

— Sou Muzenza, Sarajane

A Mudança do Garcia

Filhos de Gandy, Ara Ketu

Walter Queiroz: poesia !

Apaches e muito mais:

Carnaval de glória e paz...

Quem jamais esqueceria ?!

— Só queria um por cento

Da riqueza de Guanaes

De Sangalo, de Chiclete

Etecéteras e tais...

Êta indústria de dinheiro

Deste Carnaval fagueiro

Alienante demais !

— 60 anos de Trio

Nós precisamos louvar

Porque os nossos heróis

Chamados Dodô e Osmar

Tão chorando lá no céu

Diante do escarcéu

Que acabaram de instalar.

E aqui Barreto encerra

Esses versos de cordel

Desejando que essa Festa

Tenha mais sabor de Mel

E a praça do povão

Volte a ter animação

Sem a onda do “Kartel”” !

FIM

Salvador, Carnaval de 2010

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