Acervo Edmar Oliveira
Nota do blog: Recomendo a leitura desse texto para os aprendizes da militância antimanicomial. Você que trabalha em hospitais psiquiátricos, deseja uma sociedade sem manicômios, e não percebe que sua pura e simples existência acaba por se impor quando a luta perde em radicalidade. Definitivamente, precisamos de mais recursos para a implantação de uma rede de serviços substitutivos ao hospício e urgente reformulação de novos modelos de formação de recursos humanos.
HOJE O "LOUCURA" VAI SAIR, MAS EU NÃO VOU
Edmar Oliveira
O “Loucura Suburbana” é um bloco carnavalesco que foi engendrado dentro do Hospital de Engenho de Dentro como parte de uma utopia que ali acontecia na direção do inatingível lema “Por uma Sociedade sem Manicômio”. Melhor explico, a equipe dirigente do antigo hospício, por dez anos tentou substituir o manicômio por serviços comunitários e de mais serventia aos usuários de Saúde Mental. O bloco carnavalesco por bons sete anos saía na quinta-feira gorda, abrindo os portões do hospício para levar a loucura às ruas do Engenho de Dentro na utopia de um dia não retornar. O bloco era a ponta festiva da utopia que foi construída e que mudou o destino de muitos dos habitantes do hospício. O “Loucura Suburbana” era a comemoração de que se podia sonhar com um amanhã em que o hospício não mais existisse. O bloco queria ganhar as ruas e não ter que retornar na quarta feira de cinzas. Sonhava em ser feliz derramando sobre a cidade a sua loucura o ano inteiro. E na sua irreverência aplicou injeções num boneco que representava o prefeito louco da cidade, falou mal do Ministro da Saúde e seus programas, encarnou a briga da Coordenação Nacional de Saúde Mental com a poderosa e conservadora Associação Brasileira de Psiquiatria, sacaneou com a equipe que dirigia o hospital, dentro do clima carnavalesco que pode e deve falar mal de todo mundo. Primeiro assustou, mas depois ganhou aplauso da população do subúrbio.
Acontece, como sempre soe acontecer, o hospício se impôs ao sonho. A equipe dirigente teve que se afastar por não concordar com os rumos que a prosa vinha tomando. O hospício estava pronto para encerrar suas atividades, como documentei no livro “Ouvindo Vozes”, mas o dragão acordou, retirou as amarras e retomou seu rumo como que inexorável. O projeto foi interrompido e corre riscos: a falta de psiquiatras não pode justificar o retorno da emergência (hoje no hospital geral) para o hospício; a internação de crianças não pode ressuscitar o antigo hospital de neuro-psiquiatria infantil; os moradores não deveriam ser reconduzidos às enfermarias. Em suma, o risco é o renascimento do hospício para a glória do alienismo nacional.
O “Loucura Suburbana” podia sair denunciando essa situação ou não saindo para que a cidade sentisse que a loucura tinha sido novamente enclausurada. Mas o bloco ficou surdo ao acontecer e foi domesticado pelo hospício, que o deixa sair, desde que retorne sempre ao final da tarde, os tamborins cansados, o surdo calado, a cuíca gemendo, para que as dores sejam aprisionadas pelo hospício até o próximo carnaval. O “Loucura Suburbana” hoje sai, mas eu não vou porque me sinto em tristeza...
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e mais um triste: o meu amigo Alfredo morreu ontem ao som do ensaio do bloco...
Fonte: Piauínauta
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