Nota do blog: Manaus tem uma população de 2 milhões de habitantes. A cobertura proporcionada pelos serviços de saúde mental reduz-se a dois CAPS e um hospital psiquiátrico (com um ambulatório e um pronto-atendimento para crises psiquiátricas). São responsáveis por esse quadro lastimável o silêncio das nossas entidades de classe e o descompomisso dos gestores com as causas populares. Entre os trabalhadores de saúde mental há honrosas exceções, já que a maioria ou se justapõe ao aparelho burocrático estatal, ou cuida apenas dos seus interesses pessoais e/ou grupais.
Impasse no manicômio
O consultor de Saúde Mental da OMS Ernesto Venturini costuma dizer que o verdadeiro problema não é fechar o hospital psiquiátrico, mas abrir possibilidades de vida na comunidade. Significa dizer, para ele, que faz-se necessário construir a prática dos direitos e consolidar uma rede integrada de saúde. Eis a essência da reforma psiquiátrica em sua versão mais avançada, a de uma sociedade sem manicômios.
Se é fato que a realização de uma reforma psiquiátrica pra valer exige modificação da lei, foi a supressão de práticas anteriores a ela que se constituem no xis da questão.
Datam daí os impasses do manicômio local. Atualmente há um descompasso entre os diversos atores e suas respectivas práticas. Lembrando que uma reforma é feita com profissionais de saúde, usuários dos serviços e familiares, entre outros.
A lei obtida pelo esforço de uns, e desprezada pela omissão de outros, por si só não é capaz de renovar a atitude do profissional comprometido com a cultura manicomial.
Com quais forças pode-se contar para recuperação da dignidade profissional e de práticas comprometidas com a construção de uma sociedade sem manicômios? Como espantar a inércia institucional e as resistências que comprometem as mudanças alcançadas noutros estados e municípios brasileiros nos últimos trinta anos? Como resgatar o elo perdido com nossa própria história? Afinal fomos o primeiro estado da federação a construir novas práticas rumo à reforma psiquiátrica desejada.
Passados pouco mais de vinte anos, tais práticas são desconhecidas pelas novas gerações. Para desqualificar as conquistas passadas, um dirigente do velho hospício, ao ser indagado sobre a existência de uma horta numa área invadida por população sem teto na sua administração, afirmou que desconhecia o fato, e acrescentou que se houve alguma plantação devia ser de outra “coisa”.
A mesma alusão vem sendo feita para atingir o Ministro do Meio Ambiente, contrário à construção da BR 319. À falta de argumento crítico, ouvi um parlamentar e um radialista partir para a ofensa moral, numa referência ao suposto consumo de maconha por parte do referido ministro.
Temos uma lei de saúde mental, mas o modelo manicomial resiste às mudanças, seja porque os recursos humanos não se converteram ao modelo psicossocial, seja porque há falta de vontade política expressa na ausência de prazos, recursos e incentivos para a implantação do novo modelo de atenção diária à saúde mental.
Atualmente, até os alunos secundaristas sabem que o modelo substitutivo ao manicômio se dá através da definição de novos territórios, respeitadas as características sociais e epidemiológicas da população, com a implantação de uma outra rede de serviços que venha permear o espaço social com projetos comunitários.
Ora, a substituição do modelo tarda não por imperfeição ou falta de credibilidade da lei, mas porque não foram eliminados todos os vínculos entre a razão moderna e o controle da loucura, o que retarda a emergência de sujeitos que não temam criar novos cenários no cotidiano.
Manaus, Março de 2010.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
Nota do blog: Artigo publicado no caderno Saúde & Bem Estar do jornal Amazonas em Tempo, edição deste domingo. O artigo foi republicado, suponho que em razão da II Conferência Estadual de Saúde Mental, encerrada no último dia 21 de maio. O artigo é oportuno porquanto é o único, no contexto da conferência, a problematizar a existência do manicômio. A conferência passará para a história como aquela em que a plenária viu cair a máscara dos "reformistas de araque". Estes compõem a base de um tripé que retarda a reforma psiquiátrica no Amazonas, ou por lhes faltar o alcance dos princípios éticos que a sustentam, ou por uma visão anacrônica da loucura, amparada numa perversa visão da cultura política. Para estes, a relação entre trabalhadores e usuários de saúde mental não se dá dentro do espaço da luta política. Para eles essas relações se reduzem e se confudem com a relação entre terapeutas e pacientes. Lástima!
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