maio 28, 2010

O discurso da lucidez de um lunático

"O DISCURSO DA LUCIDEZ DE UM LUNÁTICO" foi lido durante a apresentação de uma "Mesa Redonda", na IV Conferência Estadual de Saúde Mental - Intersetorial - Consolidando avanços e Enfrentando desafios. Seu autor estava inscrito como delegado do segmento dos "usuários do sistema de saúde mental".

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O DISCURSO DA LUCIDEZ DE UM LUNÁTICO

Saudações a todos, sem qualquer distinção hierárquica, por uma simples questão de respeito à nossa condição humana, que nos impõe a necessidade de vivermos em sociedade, sujeitos a direitos individuais inalienáveis – direitos que nos permitem ser quem somos. 

Saudações a esse todo que somos (cada um com suas particularidades), nessa nossa tribo da “Saúde Mental” – mais um dos segmentos desse “Mundo de Compartimentos” que vivemos.

Aqui, venho começar pelo fundamental: - dissecar definições a respeito da LOUCURA, do TRANSTORNO MENTAL ou SOFRIMENTO PSÍQUICO. Busco entender quem é o LOUCO ou quem chamam de PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL, ou ainda quem seja identificado como “SUJEITO PSIQUICAMENTE SOFREDOR”. 

Porque esse espectro denominado vulgarmente de “loucura” é a perda da razão e também a confusão de sentidos, onde personagens perdem-se nos significados que emprestam a si mesmos; é o que se vê nos olhos que vagueiam a esmo; nas vozes da figuras imaginárias que ditam ordens e sugestionam sonhos; nos atos repetitivos das manias e o foco fixo nas obsessões; é o que se nota no furor das tragadas em bagas catadas no chão; na freqüente falta de coordenação motora ligada ao trauma provocado por determinadas repressões, como também, as convulsões geradas por lesões cerebrais; são as agressões violentas dos alcóolicos e seus “delirium tremens”; a saliva que teima em escorrer pela boca afora, habitual em perversões sexuais; é aquela fala que não diz coisa com coisa; e tanto mais que dói; que fere e maltrata; que incomoda, e até proporciona a delícia de doces delírios; são os melindres de quem foge e se esconde onde pode, muitas vezes, na merda, na miséria. Pois, se bem investigarmos, perceberemos quem carrega esse estigma de “louco”: - é o pobre – aquele que nada possui – o excluído do mercado de “produção&consumo” – quem está “atolado na merda”. O rico, quando é tocado pelo transtorno mental, submete-se aos cuidados particulares ou recorre ao self service farmacêutico das drogas legalizadas, munido de receita ou não, como ainda pode refugiar-se no submundo dos narcóticos.

Aquele que enlouquece, seja quem for, é alguém que merece ser cuidado. Todos nós, se não nos cuidarmos, poderemos passar por tais situações, mencionadas acima. São esses, alguns dos sintomas que definem o SOFRIMENTO MENTAL ? 

Então, a idéia clara na propagada “Reforma Psiquiátrica” é a “Prática do Cuidado”.

Cuidar de quem ainda não pode cuidar-se, ensinando-o a manter o autocuidado.

Cuidar de quem não sabe e não poderá aprender a cuidar de si mesmo, por algum motivo, tenha recursos ou não. A todos deve estar disponibilizado o devido cuidado.

Para chegar a tal ponto, não se faz necessário construir grandiosas estruturas assépticas de concreto armado, com tecnologias de última geração. Precisa-se de lugares, lógico, mas, o essencial é que se faça a capacitação de equipes multidisciplinares (psiquiatras, psicólogos, , enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos, artesãos, artistas plásticos e teatrais, musicoterapeutas, educadores físicos, nutricionistas, médicos clínicos, dentistas, PROFISSIONAIS CUIDADORES – PROFISSIONAIS DE SAÚDE. Isso não significa que todos atuem juntos, porém, que um número mínimo de “Técnicos das Especificidades” venha proporcionar a SAÚDE INTEGRAL.

É a rede SUS fluindo para atender àqueles que necessitem dos seus cuidados

Por isso, PRECISAMOS DE CUIDADORES – de gente que se disponha a conhecer meios pelos quais pode-se conviver com as “estranhezas” - gente que se atreva a conhecer o território onde se desencadeia a crise e ouse aplicar soluções possíveis ao caso.

Essa gente, no lugar de APRENDER CUIDANDO, deve estar habilitada para exercitar a “Arte dos Relacionamentos”. Porque, com uma ótica humanista, entenderemos que àquele rotulado de “louco” deve ser legado um modo de relacionar-se consigo mesmo, com sua subjetividade, além dum modo de tecer relações com seus próximos.

CUIDADO COM A SANIDADE DAS CONVIVÊNCIAS.

CUIDADO COM O RESPEITO ÀS DIFERENÇAS.

CUIDADO.

Eu mesmo, me expresso no lugar de quem já foi “paciente de hospital psiquiátrico” e vem chegando ao lugar de “Sujeito de Si”. Porque já fui chamado de “esquizofrênico” por um psiquiatra psicoterapeuta. Anos depois, um psicólogo disse-me que era um “psicótico”. Mais tarde, outro psiquiatra contou-me que apresentava um quadro de “transtorno bipolar”. Recentemente, chamaram-me de “usuário” em um CAPS. Hoje, sei que sou uma pessoa, um ser humano, um cidadão que merece certos cuidados. Não interessa os sintomas que apresentei, mas o homem que sou. E, reconheço-me como usuário enquanto “uso o sistema de saúde mental” e apenas somente nesse caso. Aqui, neste instante, sou membro da AMEA – Associação Metamorfose Ambulante de usuários e familiares do sistema de saúde mental do estado da Bahia – e militante do movimento social da “Luta Antimanicomial”

No meu cotidiano, sou uma pessoa que vem aprendendo a se cuidar, como outros companheiros(as) que também vivenciam o mesmo aprendizado. Mas, sei da existência daqueles que tem limitações mais acentuadas. Sei que existem aqueles que não podem e nem poderão cuidar de si mesmos, nem das próprias necessidades físicas (da alimentação à higiene), nem poderão dar conta da capacitação profissional ou mesmo dos modos de convivência social, nem de atividades culturais. E daí ?

É daí que PRECISAMOS DE CUIDADORES.
Pessoas que sejam capacitadas “profissionalmente” de CUIDAR da “estranheza alheia”.

E quem estaria mais gabaritado para ocupar esse lugar, do que os “usuários” que já cuidam de si mesmos, auxiliados por técnicos comprometidos com esse cuidado ???

Na minha opinião, com a autoridade de quem vem resolver seus próprios transtornos, é disso que trata a “Reforma Psiquiátrica”. Não é mais o domínio do manicômio que tranca e segrega, nem do hospício que encarcera e exclui, menos ainda dos hospitais que contem e estigmatizam. É A PRÁTICA DE UMA EQUIPE QUE CUIDA, com a única receita possível, que vem das ações de AMOR. É assim que venho aprendendo a cuidar de mim mesmo : VIVENDO. Dia-a-dia... caindo e ... Levantando. Encontrando um jeito de me cuidar. Aceitando a atenção de quem me ama, procurando amar (Parece piegas – algo do vocabulário enjoado dos livros de autoajuda). Entretanto, toda técnica aplicada ao psiquismo humano, todas as ciências que tomem o comportamento humano com objeto de estudo, só lograrão êxito em suas aplicações, quando estiverem a serviço do AMOR – DA CONSTRUÇÃO ESPIRITUAL DO AMOR – O EXERCÍCIO DA INTERAÇÃO - escuta & intervenção em HARMONIA – constante COMPREENSÃO – o ver-se n’outro e o fito em tornar-se UM. AMOR !!!

Penso que, quando nossos governantes, com sua “Corte de assessores”, experimentarem este sentido de gerar harmonia que vem do amor, poderão, por exemplo, implantar unidades de CAPS III em solo soteropolitano, e permitir que a rede SUS flua com sucesso (SUScesso), de acordo com a realidade local, pois, ainda precisamos de, ao menos, um “Centro de Convivência”/ mais algumas “Residências Terapêuticas”/ e tantos outros serviços que venham substituir de vez os  hospitais psiquiátricos. Não se trata de “CAPScônios”, nem de reformas decorativas para humanizar hospitais. CAPS III 24hs – lugares de referência, com alguns leitos de acolhimento, que mantenham equipes multidisciplinares revezando-se em turnos, como a cumprir plantões. Isso, para que as pessoas tenham onde recorrer e, quando necessitarem do cuidado especializado, encontrem a atenção biopsicossocial. 

Esse é o cuidado mais perto do real – aquele que identifica & intervém na realidade da crise.

É o cuidado que busca a sanidade. É o propósito óbvio da unidade de saúde:

- ENCONTRAR A SANIDADE, GERAR SAÚDE.

E, como haveremos de chegar a esse lugar que mais parece “a velha Utopia de Erasmo” ???

- Quando nos encontrarmos com o sentimento oculto nesse vocábulo tão desgastado: AMOR.

Porque, quando esse momento acontecer, a gente vem em busca da UNIÃO. 

Gestores responsáveis, Técnicos competentes, Usuários implicados. JUNTOS, seguem ao encontro do melhor modo de servir, uns aos outros, pra chegar à instalação e manutenção de um “Sistema de Saúde” digno do nome, capaz de atender às necessidades de todas as famílias, inclusive às próprias, pois, É UM SISTEMA DE SAÚDE UNIVERSAL, ao qual, TODOS TEM DIREITO – CUMPRAM-SE NOSSOS DIREITOS.

GRATO PELA ATENÇÃO !!!

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