Irã
Alguns pontos foram alvo de confusão nesse imbróglio persa, e a mídia brasileira, com seus tentáculos de trolls pervadindo tudo, contribuiu para isso, ao não informar corretamente. Em seu antilulismo psicótico, a mídia não consegue mais informar com isenção e, neste caso, está deliberadamente confundindo a opinião pública para esconder uma vitória que pode fortalecer politicamente o governo. Vale tudo para eleger Serra, até destruir o mundo.
É incrível a inversão de valores no caso do Irã. Os Estados Unidos patrocinaram um golpe de Estado no Irã em 1953. O país era uma democracia moderna, laica e tranquila, mas que se tornou inimiga dos interesses ocidentais quando nacionalizou suas companhias de petróleo. Os EUA deram dinheiro e armas químicas para Saddam Hussein invadir o Irã, num conflito que matou 1 milhão de iranianos e devastou a frágil economia do país. Deram dinheiro para Bin Laden montar uma organização guerrilheira contra a União Soviética e criar a Al Qaeda. Aceitaram que Israel construisse bombas atômicas sem autorização da comunidade internacional. E agora os EUA e seus lacaios midiáticos espalhados pelo mundo ocidental, incluindo as hipócritas lideranças européias, querem pintar o Irã como o grande vilão?
Vamos esclarecer alguns pontos. O acordo do Brasil é o que a própria ONU havia exigido no ano passado e não conseguiu, certamente pela incompetência da diplomacia americana e européia, que não se cansam de usar um vocabulário extremamente desrespeitoso e agressivo em relação ao Irã. Ele (o acordo) supõe que o Irã armazene e enriqueça a maior parte de seu urânio em outro país. Mas não exclui o enriquecimento de outra parte no próprio Irã. E sobretudo não significa, obviamente, o cancelamento do programa nuclear iraniano.
Particularmente, eu acho absurda essa exigência de que o Irã processe seu urânio em outro país. Para mim, isso é uma terrível violação da soberania iraniana. Foi um ato de muita humildade por parte do Irã. Um gesto de paz, quase de submissão. O ceticismo, beirando ao escárnio, com que as potências ocidentais estão recebendo esse gesto é outra agressão, que certamente não ajudará a torná-lo efetivo. Já conseguiram humilhar o Irã forçando-o a aceitar processar seu urânio em outro país. Agora querem sapatear sobre a honra dos altivos persas.
Eu falei num post anterior que não gosto do Irã porque não sou religioso e não gosto de religião. No ano passado, andei meio carola, dizendo que era católico e tal. Mas agora voltei ao meu normal ateu. Claro, portanto, que não gosto de um país onde a religião manda em tudo.
Outro motivo para não gostar é que eles não bebem álcool. Acho que é proibido por lá, ou quase isso, e eu sou um apaixonado por bebidas de todo tipo. Não suportaria viver num país onde não poderia tomar minha cervejinha em paz, e acho um absurdo intolerável que seja proibido. Mas é o país deles. Os EUA também proibiram o consumo de álcool por muitos anos.
Agora, o que me irritou mesmo foi aquela ONG fincar mãozinhas na areia de Ipanema pedindo direitos humanos no Irã. Ora, o Brasil é um dos países onde mais existem crianças vagando pelas ruas, sofrendo terríveis sofrimentos psicológicos por causa do crack, da cola, do abandono, da violência, da fome. Em São Paulo, a polícia tem torturado e assassinado um motoboy por semana. Há pouco, a mesma polícia paulista agrediu professores indefesos e desarmados. que protestavam por melhores salários. E essas dondocas querem direitos humanos no Irã? Ah, vão se danar!
Alguém conhece de verdade os problemas do Irã para exigir que as coisas sejam assim ou assado por lá? Há poucas décadas, milhões de iranianos morriam de fome. Hoje, é um país estável, quase em miséria extrema, com um dos maiores índices de ensino superior per capita do oriente médio. Os índices de criminalidade no Irã são próximos de zero, e as dondocas de Ipanema, residentes numa das cidades mais violentas do mundo, querem ensinar ao Irã, uma civilização com dezenas de milhares de anos, como deve se comportar?
O Jornal da Globo desta segunda-feira entrevistou um tucanão da USP que disse que o acordo só atrapalhou as negociações. A inveja está levando muitos intelectuais paulistas ao fazerem um papel ridículo.
Além disso, é claro que esse acordo não resolve tudo. Taí outra tática mesquinha. Inventa-se uma tese esdrúxula segundo a qual o acordo significaria o fim de todos os problemas do oriente médio e do Irã. Não é assim, obviamente. Ele é um avanço. Um grande avanço. Mas tem significado gepolíticos mais profundos do que isso. Ele projeta o Brasil. Ele torna o mundo multipolar uma realidade.
O Irã tem que usar energia nuclear, até porque o mundo precisa parar de usar o petróleo como fonte de energia. Petróleo terá usos mais nobres no futuro, como a fabricação de derivados. As fontes energéticas devem ser renováveis e limpas. E a energia do futuro, na prática, por enquanto, é a nuclear. EUA e Europa estão construindo centenas de novas usinas nucleares, afora as milhares que elas já possuem. Mais de 80% da energia consumida na França vem de suas usinas nucleares. É de uma hipocrisia sem limites querem que o Irã, um país pobre, não possa sequer desenvolver a tecnologia nuclear para uso pacífico.
Corrijam-me se eu estiver errado, mas até onde eu sei, o Irã não se envolveu, por iniciativa própria, em quase guerra nenhuma desde que Xerxes tentou invadir a Grécia, há mais de dois mil anos. Nos últimos 50 anos, a Europa quase destruiu o mundo, matando dezenas de milhões de seres humanos. Os EUA patrocinaram golpes de Estado em todo planeta, invadiram países, mataram milhões de inocentes. Logo ali, ao lado do Irã, os EUA já mataram mais de 1 milhão de iraquianos nos últimos oito anos, provocando um tremendo desequilíbrio no oriente médio. Os moderados árabes e persas que pregavam diálogo com o ocidente foram desmoralizados pela brutalidade assassina dos falcões ianques. E perderam eleições.
Podíamos ir longe e recordar o golpe de 1953, patrocinado pela CIA, que derrubou um regime laico e democráticos, como início do endurecimento político da política iraniana. Mas há fatos mais recentes. A invasão do Iraque, por exemplo, que deu força à linha dura iraniana. O Irã também tem sua indústria bélica doméstica. Também tem seus linhas duras. Seus falcões de guerra. Com a guerra no Iraque, eles ganharam forças. O país aumentou gastos militares. Fechou-se politicamente. Ampliou a repressão a movimentos de oposição, com vistas a manter o regime coeso. É um movimento natural. Em tempos de guerra, a democracia sempre perde. Dá ânsia de vômito ver os Estados Unidos invadirem o Iraque, violando todas as leis internacionais, e depois virem cobrar abertura política no Irã e pintar o país como o vilão do mundo.
O Irã não tem mísseis de longo alcance. Não tem armas nucleares. Não tem armas químicas. É um país militarmente fraco. Sua força reside embaixo da terra, nas suas gigantescas jazidas de petróleo. É disso que estamos falando. Toda a encenação diplomática dos EUA visa derrubar o atual regime iraniano, que é fechado, autoritário, cruel, mas nacionalista e independente, para botar um aliado que aceite vender petróleo a baixo preço às refinarias ocidentais.
Outra coisa que é preciso esclarecer. É equivocado conceitualmente falar que a esquerda adora o Irã e a direita odeia. A esquerda democrática não tem nada a ver com a teocracia iraniana. O regime político iraniano não é de esquerda. É conservador. A teocracia iraniana nasceu da costela da ditadura de direita nascida após um golpe de Estado patrocinado pelos Estados Unidos, durante a qual a esquerda organizada, trabalhista, sindical, foi simplesmente dizimada. Restaram só os padrecos islâmicos. Que se organizaram, pegaram em armas e tomaram o poder. A esquerda iraniana não existe.
Não se pode confundir, porém, a defesa de princípios de autodeterminação e soberania com louvação besta do regime iraniano. O Irã tem problemas gravíssimos. Mas eles serão resolvidos internamente, pelos próprios iranianos. Qualquer interferência externa, já está provado, só atrapalha.
Os iranianos são inteligentes, combativos e orgulhosos e tem plena condição de evoluir politicamente com suas próprias pernas. Se a comunidade internacional quer ajudar algum país, se as dondocas de Ipanema estão preocupadas com direitos humanos, eu aconselharia voltar sua atenção para alguns países africanos, para o Haiti, ou para a baixada fluminense, onde há pessoas em situação muito mais triste do que no Irã.
Fonte: Óleo do Diabo
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