maio 31, 2010

O jornalismo fraudulento da VEJA

Para quem gosta de acreditar na Veja

8 maio 2010  

A matéria é um pouco extensa. Mas vale a pena ser lida. Ela mostra, pragmaticamente, em que a Veja se transformou. E, paradoxo, ao mesmo tempo em que desnuda o mau jornalismo, nos mostra um exemplo do bom jornalismo. 

A farra do jornalismo oportunista?

A revista Veja dessa semana publicou uma matéria intitulada “A farra da antropologia oportunista”. Aparentemente os jornalistas Leonardo Coutinho, Júlia de Medeiros e Igor Paulin desejavam denunciar o que seria uma espécie de “esquema” entre ONGs internacionais, antropólogos e o Governo Federal para extinguir a propriedade privada de imóveis rurais no Brasil através da demarcação de terras indígenas e terras de quilombo, além da criação de unidades de conservação. 

Comento a matéria aqui sem entrar no mérito de outras questões mais profundas, abordando dois aspectos da reportagem que são absolutamente hediondos para os padrões de qualquer tipo de jornalismo.

A falácia

 Os repórteres abrem a matéria com a seguinte afirmação:
Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil.

Qualquer alma com dois dedos de bom senso questionaria essa afirmação, uma vez que as terras indígenas correspondem a 13% da área do país, sobretudo na região amazônica. Coloco aqui dados do Instituto Socioambiental acerca dessa extensão: 

O Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, ou seja, 8.511.965 km2. As terras indígenas (TIs) somam 653 áreas, ocupando uma extensão total de 110.500.556 hectares ( 1.105.006  km2). Assim, 13% das terras do país são reservados aos povos indígenas.
A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 409 áreas, 108.720.018 hectares, representando 21.67% do território amazônico e 98.61% da extensão de todas as TIs do país. O restante, 1.39%, espalha-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do Sul.

Agora vejamos um mapa onde essas terras estão representadas:
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Digamos então, que o restante dessa porcentagem absurda levantada pelos jornalistas, agora 64,6%, estivesse relacionado às terras de quilombo ou às unidades de conservação. Ainda assim os números parecem não bater, já que segundo o “Atlas da Questão Agrária Brasileira”, organizado pela UNESP, as áreas das unidades de conservação federais e estaduais em 2007
totalizavam 99,7 milhões de hectares, sendo 98 milhões referentes às unidades de conservação em ambientes terrestres. Dessas unidades, 310 (41,5 milhões de ha) são de proteção integral e 286 (58,2 milhões de ha) de uso sustentável. Entre 1997 e 2007 foram criadas 251 unidades de conservação e acrescidos 51,35 milhões de hectares de unidades em ambientes terrestres. A distribuição territorial das unidades de conservação é desigual e a maior parte está no bioma amazônico, que concentra 74,2 milhões de hectares – 75,7% do total.
Lembrando “o Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares”, os 98 milhões de hectares, já que estamos excluindo as unidades de conservação oceânicas, corresponderiam a aproximadamente 11,71% do território nacional. Boa parte dessas terras não é “improdutiva”, mas são as chamadas “áreas de uso sustentável” que seguem regras especiais para a exploração, como demonstra o mapa abaixo. 

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Então, temos 24,7 1% do Brasil dedicado a terras indígenas e unidades de conservação, correto? Não necessariamente. Se sobrepusermos os dois mapas é possível perceber que há sobreposição de áreas de unidades de conservação e terras indígenas em vários pontos do país, o que diminuiria esse percentual. Mas, vamos supor que há 24% do território nacional, sobretudo na Amazônia Legal, dedicado a unidades de conservação e terras indígenas. 

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Para chegar então aos 53,6% restantes (77,6% – 24%) seria necessário que as terras de quilombo abarcassem estrondosos 459 milhões de hectares… o que não é verdade. Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo 
Em setembro de 2008, os territórios quilombolas titulados somavam 1.171.213 hectares. Até essa data, o Pará continuava como o estado com a maior extensão titulada: 628.674,7 hectares, o que corresponde a cerca de 54% do total já regularizado.

[Para os mais interessados, aqui há uma tabela onde estão os nomes, localização, e área de todas as comunidades.]
Logo, temos 1.171.213 hectares em terras de quilombo tituladas, o que corresponde a, vejam só,  0,13% do território nacional. E as maiores terras também estão na área da Amazônia Legal – notem que novamente calculamos a porcentagem desconsiderando eventuais sobreposições  com unidades de conservação.

Com base nesses dados, a porcentagem de 77,6% alegada na reportagem da revista Veja não se sustenta sob qualquer argumento. Além disso, a matéria dá a entender que basta requerer a terra para se ter acesso a ela, ou mesmo que o governo em exercício estaria sendo uma espécie de “facilitador” do processo. Isso não se sustenta no caso das terras de quilombo e nem das terras indígenas, uma vez que o governo em exercício demarcou e homologou menos terras (em extensão e quantidade) do que o governo anterior!

A matemática esotérica dessa reportagem parece estar baseada numa alegação da Senadora Kátia Abreu, de que “ 90% do território brasileiro estaria congelado e inacessível ao ‘progresso’, como terras indígenas, quilombos, parques, cidades e infra-estrutura”. Ela disse ter encomendado uma pesquisa junto à Embrapa que provaria a veracidade dessa afirmação… espero que, diferente da Senadora, os pesquisadores em questão saibam soma, subtração e porcentagem.

A fraude

 A reportagem é escrita como se fosse um conto, uma peça de ficção, parte de um panfleto, não havendo fonte citada para qualquer uma das informações presentes. Também parece-me estranho que uma reportagem com uma denúncia tão severa, que basicamente implica o fim da propriedade privada de imóveis rurais no Brasil, não conte com qualquer tipo de mobilização contrária por parte de geógrafos, agrônomos, professores ou políticos. Não haveriam centenas de pessoas se manifestando contra tamanha mudança na questão fundiária brasileira? Essas pessoas não dariam sua opinião à Veja? A ausência de opiniões contrárias parece justificada pela suposição da reportagem de que a demarcação de terras indígenas e terras de quilombo seria parte de um “esquema” do qual a população em geral e até setores do Estado não saberiam – uma “conspiração” absolutamente inverossímil.

A reportagem traz, no entanto, duas supostas afirmações de antropólogos conhecidos no Brasil. Uma seria de Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, e outra de Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da FUNAI e professor da Universidade Federal Fluminense. Ambos se manifestaram dizendo que não foram entrevistados pela revista, e que esta distorceu suas palavras.

Reproduzo as frases aqui:
- Frase atribuída a Mércio Gomes
Diante desse quadro, é preciso dar um basta imediato nos processos de demarcação“, como já advertiu há quatro anos o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai e professor da Universidade Federal Fluminense.

- Resposta de Mércio Gomes
Denego-lhe o falso direito jornalístico de atribuir a mim uma frase impronunciada e um sentido desvirtuante daquilo que penso sobre a questão indígena brasileira.

- Frase atribuída a Viveiros de Castro
Casos assim escandalizam até estudiosos benevolentes, que aceitam a tese dos “índios ressurgidos”. “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original“, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

- Resposta de Eduardo Viveiros de Castro

Na matéria “A farra da antropologia oportunista” (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), seus autores colocam em minha boca a seguinte afirmação: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original”. Gostaria de saber quando e a quem eu disse isso, uma vez que (1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma. Na verdade, a frase a mim mentirosamente atribuída contradiz o espírito de todas declarações que já tive ocasião de fazer sobre o tema. Assim sendo, cabe perguntar o que mais existiria de “montado” ou de simplesmente inventado na matéria. A qual, se me permitem a opinião, achei repugnante.

- A Veja respondeu no dia 03/05/2010 afirmando 

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro enviou a VEJA uma carta – divulgada amplamente na internet – sobre a reportagem “A farra antropológica oportunista” [sic], publicada nesta edição da revista. Na carta, Viveiros de Castro diz: “(1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma”.

Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, que expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o texto na reportagem de uma maneira sintética.

Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita mais de uma vez em seu texto (“Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante” e “pode-se dizer que ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante”).

O antropólogo Viveiros de Castro pode não corroborar integralmente o conteúdo da reportagem, mas concorda, sim, como está demonstrada em sua produção intelectual, que a autodeclaração não é critério suficiente para que uma pessoa seja considerada indígena.

O texto em questão se encontra disponível aqui e foi integralmente reproduzido pela revista Veja com algumas partes negritadas que supostamente corroborariam que o ponto de vista do pesquisador era condizente com o da publicação. Não entrando no mérito da interpretação do texto, é possível afirmar que houve, no mínimo, má fé por parte do trio de jornalistas responsáveis pela reportagem. Não sou jornalista e não sei nada acerca da política de ética da revista Veja, mas aspas são aspas! Se você não entrevistou alguém ou não está fazendo uma citação ipsis litteris de um conteúdo elas não valem. Não adianta dizer que a frase “espelha” a opinião do professor (ainda que ela assim o fizesse), isso não torna a suposta citação menos fraudulenta.

- E o professor Viveiros de Castro respondeu novamente:
Aos Editores da revista Veja:

Em resposta à mensagem que enviei à revista Veja no dia 01/05, denunciando a imputação fraudulenta de declarações que me é feita na matéria “A farra da antropologia oportunista”, o site Veja.com traz ontem uma resposta com o título “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Ali, os responsáveis pela revista, ou pela resposta, ou, pelo jeito, por coisa nenhuma, reincidem na manipulação e na mentira; pior, confessam cinicamente que fabricaram a declaração a mim atribuída.

Em minha carta de protesto inicial, sublinhei dois pontos: “(1) que nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) que não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma”.

Veja contesta estes pontos com os seguintes argumentos:

(1) “Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, que expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o texto na reportagem de uma maneira sintética.”

Respondo: é falso. A Assessoria de Imprensa do Museu Nacional telefonou-me, talvez no início de março (não acredito mais em nada do que a Veja afirma), perguntando se receberia repórteres da mal-conceituada revista, a propósito de uma matéria que estariam preparando sobre a situação dos índios no Brasil. Respondi que não pretendia sofrer qualquer espécie de contato com esses profissionais, visto que tenho a revista em baixíssima estima e péssima consideração. Esclareci à Assessoria do Museu que eu tinha diversos textos publicados sobre o assunto, cuja consulta e citação é, portanto, livre, e que assim os repórteres, com o perdão da expressão, que se virassem. Não “recomendei a leitura” de nada em particular; e mesmo que o tivesse feito, não poderia ter “autorizado Veja” a usar o texto, simplesmente porque um autor não tem tal poder sobre trabalhos seus já publicados. Quanto à curiosa noção de que eu autorizei a revista, em particular, a “usar de maneira sintética” esse texto, observo que, além de isso “não condizer com a verdade”, certamente não é o caso que esse poder de síntese de que a Veja se acha imbuída inclua a atribuição de sentenças que não só se encontram no texto em questão, como são, ao contrário e justamente, contraditas cabalmente por ele. A matéria de Veja cita, entre aspas, duas frases que formam um argumento único, o qual jamais foi enunciado por mim. Cito, para memória, a atribuição imaginária: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original” . Com isso, a revista induz maliciosamente o leitor a pensar que (1) a declaração foi dada de viva voz aos repórteres; (2) ela reproduz literalmente algo que disse. Duas grosseiras inverdades.

Veja contesta o segundo ponto com o argumento:

(2) “Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita mais de uma vez em seu texto (“Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante” e “pode-se dizer que ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante”).” Ato contínuo, a revista dá o texto na íntegra, repetindo que eu a autorizei a usar o texto “da forma que bem entendesse”.

(Veja o link para meu texto: http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf ).

Pela ordem. Em primeiro lugar, essa resposta da revista fez desaparecer, como num passe de mágica, a frase propriamente afirmativa de minha suposta declaração, a saber, a segunda (Só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original”), visto que a primeira (Não basta dizer que é índio etc.) permanece uma mera obviedade, se não for completada por um raciocínio substantivo. Ora, o raciocínio substantivo exposto em meu texto está nas antípodas daquele que Veja falsamente me atribui. A afirmação de Veja de que eu a autorizara a “usar” o texto da forma que ela “bem entendesse” parece assim significar, para os responsáveis (ou não) pela revista, que ela poderia fabricar declarações absurdas e depois dizer que “sintetizavam” o texto. Esse arrogamente “da forma que bem entendesse” não pode incluir um fazer-se de desentendido da parte da Veja.

Reitero que a revista fabricou descaradamente a declaração “Só é indio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original”. Se o leitor tiver o trabalho de ler na íntegra a entrevista reproduzida em Veja.com, verá que eu digo exatamente o contrário, a saber, que é impossível de um ponto de vista antropológico (ou qualquer outro) determinar condições necessárias para alguém (uma pessoa ou uma coletividade) “ser índio”. A frase falsa de Veja põe em minha boca precisamente uma condição necessária, e, ademais, absurda. Em meu texto sustento, ao contrário e positivamente, que é perfeitamente possível especificar diversas condições suficientes para se assumir uma identidade indígena. Talvez os responsáveis pela matéria não conheçam a diferença entre condições necessárias e condições suficientes. Que voltem aos bancos da escola.

A afirmação “só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original” é, repito, grotesca. Nenhum antropólogo que se respeite a pronunciaria. Primeiro, porque ela enuncia uma condição impossível (o contrário de uma condição necessária, portanto!) no mundo humano atual; impossível, na verdade, desde que o mundo é mundo. Não existem “ambientes culturais originais”; as culturas estão constantemente em transformação interna e em comunicação externa, e os dois processos são, via de regra, intimamente correlacionados. Não existe instrumento científico capaz de detectar quando uma cultura deixa de ser “original”, nem quando um povo deixa de ser indígena. (E quando será que uma cultura começa a ser original? E quando é que um povo começa a ser indígena?). Ninguém vive no ambiente cultural onde nasceu. Em segundo lugar, o “ambiente cultural original” dos índios, admitindo-se que tal entidade exista, foi destruído meticulosamente durante cinco séculos, por epidemias, massacres, escravização, catequese e destruição ambiental. A seguirmos essa linha de raciocínio, não haveria mais índios no Brasil. Talvez seja isso que Veja queria dizer. Em terceiro lugar, a revista parte do pressuposto inteiramente injustificado de que “ser índio” é algo que remete ao passado; algo que só se pode ou continuar (a duras penas) a ser, ou deixar de ser. A idéia de que uma coletividade possa voltar a ser índia é propriamente impensável pelos autores da matéria e seus mentores intelectuais. Mas como eu lembro em minha entrevista original deturpada por Veja, os bárbaros europeus da Idade Média voltaram a ser romanos e gregos ali pelo século XIV ­ só que isso se chamou “Renascimento” e não “farra de antropólogos oportunistas”. Como diz Marshall Sahlins, o antropólogo de onde tirei a analogia, alguns povos têm toda a sorte do mundo.

E o Brasil, será que temos toda a sorte do mundo? Será que o Brasil algum dia vai se tornar mesmo um grande Estados Unidos, como quer a Veja ? Será que teremos de viver em um ambiente cultural que não é aquele onde nascemos e crescemos? (Eu cresci durante a ditadura; Deus me livre desse ambiente cultural). Será que vamos deixar de ser brasileiros? Aliás, qual era mesmo nosso ambiente cultural original?
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Além disso, a reportagem dá a entender que a elaboração de relatórios técnicos de delimitação e identificação seria “lucrativa” para os antropólogos. Prezados, as contas são abertas, podem verificar a modesta quantia que é paga aos profissionais e depois se informem sobre o montante absurdo de trabalho em que consiste uma empreitada dessas. 

Pior, faz parecer que os morosos processos de demarcação e homologação de terras, com centenas de entraves burocráticos e judiciários seriam algo quase instantâneo, bastando que a comunidade que pleiteia o território se “autodeclare” . Os processos de homologação ou titulação dessas terras são justamente isso: processos. São passíveis de contraditório, anulação e etc. Em tempo: quem  tem a palavra final  acerca da titulação/homologação de terras é o judiciário, não os antropólogos.  O trabalho dos antropólogos é descrever como o grupo se relaciona com a terra que pleiteia e criar uma peça técnica onde reúne informações que vão desde redes de parentesco até dados sobre produção agrícola e aspectos religiosos. Esses dados compõe um documento maior, que inclui o levantamento das cadeias dominiais das terras pleiteadas e sua situação fundiária – donde se pode conhecer muito sobre a história da propriedade rural no Brasil… 

Enfim, a mentira tem perna curta.
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Updates

04/05/2010 Os dados que apresentei acerca da extensão das terras de quilombo e unidades de conservação não são desse ano. Usei deles porque não creio que houve qualquer mudança significativa no total dessas áreas. De qualquer forma, a presidência não decretou metade do Brasil em terras de quilombo e UCs de 2007 para cá, logo os dados apresentados na Veja continuam inválidos.
05/05/2010 O Núcleo de Análises em Políticas Públicas da UFFRJ publicou uma espécie de dossiê reunindo todas as opiniões, análises e manifestações acerca da controversa matéria da revista Veja. O dossiê tem sindo atualizado à medida que novas opiniões surgem e pode ser acessado aqui

05/05/2010 Há de fato uma polêmica acerca área disponível para plantio no Brasil, como aponta essa nota da Folha. A Empraba afirma que há 29% da terra disponível para agricultura e o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) questionou o relatório da Empraba afirmando que o percentual é de 36%. Os Ruralistas desejavam utilizar o estudo para propor uma revisão do Código Florestal, mas o  jornalista Marcelo Leite afirma que mesmo que reste apenas a porcentagem afirmada pela Embrapa, é possível triplicar a safra nesse espaço – em torno de 2,46 milhões de km2. Não é pouco espaço se consideramos que os EUA, um dos países com a maior superfície plantada do mundo, usa 3,73 milhões de km2 de sua área para produção agrícola

06/05/2010: O Edmar postou um email de Coutinho acerca da matéria lá nos comentários, o qual reproduzido aqui:
Os dados apresentados na reportagem estão corretos. O estudo da Embrapa utilizado como fonte para elaboração do mapa mediu não só as chamadas Unidades de Conservação. Ele considera as áreas de reserva legal (que de acordo com a região do país variam de 20% a 80% das propriedades) e as Áreas de Preservação Permanente. São essas categorias juntas que chamamos de “áreas de preservação ecológica”. 
Espero ter esclarecido e coloco-me à disposição. 
 
 
Atenciosamente, 
Leonardo Coutinho
Revista VEJA
Salvador (BA) Brasil
   
Então, o jornalista quer dizer que, tirados os 24,7% de TQs, TIs e UCs ainda temos mais de 50% do país sob reserva legal? Acho improvável.

Os dados apresentados pelo jornalista Marcelo Leite numa reportagem da Folha ( reproduzida nesse blog) são bastante distintos do resultado dos cálculos de Coutinho, destacando-se o fato de que o relatório da Embrapa tem sido motivo de controvérsia. Cito um trecho:

A bancada ruralista no Congresso, empenhada em rever o Código Florestal, adorou o estudo, mas usou-o para dar o bote só em 29 de abril. A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), que preside a CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil), conseguiu realizar nesse dia uma reunião conjunta das 11 comissões permanentes do Senado sobre a legislação ambiental.

Na pauta se destacava o estudo da unidade da Embrapa sediada em Campinas (SP), apresentado pelo autor principal e chefe da unidade, Evaristo Eduardo de Miranda. Deveria ser o golpe de misericórdia, “científico”, nas leis que supostamente engessam o agronegócio. De certo modo, o tiro saiu pela culatra.
O trabalho teve sua honestidade questionada pelo Greenpeace. Seus números foram corrigidos para cima por outra ONG, o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia): ao menos 36% do Brasil, ou até 43%, permanecia disponível para atividades agropecuárias.

Quem está com a razão? Não é fácil responder, e talvez nem seja necessário. Mesmo que restem apenas os 2,46 milhões de km2 apontados por Miranda, na pior das hipóteses, já seria muito. Toda a produção de grãos do país cabe em 767 mil km2. Dá para triplicar a safra nesse espaço, e isso sem aumentar a produtividade. Coisa impensável, porque o aumento da eficiência -e não só a ampliação da área cultivada- é que tem garantido a competitividade do agronegócio brasileiro no mercado internacional.

Fonte: Página 13

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