Descriminalização da maconha
Foto: Nivaldo de Lima - Manaus-AM, 2009
Marchas, Conferências e o Plano Integrado (de combate) às pessoas que usam drogasFoto: Nivaldo de Lima - Manaus-AM, 2009
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(Manuel Bandeira)
A situação pode até ser triste (para algumas pessoas), mas não deveria estar surpreendendo ninguém. No meio do tal problema das drogas, e das nuances difíceis, as pessoas que se preocupam com o descaso na Saúde Pública em relação às drogas têm de encarar dois pontos que surgem facilmente como problemas: 1) saber quais desafios estamos escolhendo como prioritários, e 2) avaliar as estratégias protagonizadas até o momento.
O primeiro ponto, em tese, seria o menos problemático. É sabida a existência do velho e conhecido mercado da Saúde, em seu velho e conhecido agenciamento: sempre em nome de alguma demanda que mobilize redes orgânicas de interesses. Dentro deste mercado, existem os nichos, sendo um deles o AntiDrogas. A noção de "combater o crack", como já estamos carecas de saber, opera como dispositivo que potencializa interesses distintos. Podemos arriscar aqui uma breve lista: o controle de pessoas em situações de rua; a prescrição indiscriminada de fármacos com dinheiro público; os corporativismos técnicos (problema interdisciplinar); os dogmas sobre modelos ideais de acolhimento; poderes pastorais e capitais simbólicos diversos - dentre outras coisas que literalmente "só vendo", afinal, farão parte do contexto micropolítico. De saída, deve-se refletir que tratam-se de interesses que estão aí, juntos, desde o início do projeto moderno de vida em grandes centros urbanos (há mais de 300 anos). Nem por isso, devemos pensar que sejam forças organizadas. Trata-se mais de uma corrente de forças orgânicas (reivindicadas ao natural, reproduzidas) e que, por isso mesmo, surgem onde menos esperamos.
Analisar o orgânico mercado da Saúde poderia ser importante para pensar nos limites das vias de resistência que escolhemos diante dele, enquanto pessoas preocupadas com o descaso na Saúde Pública em relação às drogas. Uma das vias está sendo, como no caso das Conferências Intersetoriais de Saúde Mental, comunicarmos nossas vivências, disputando conceitos e ideias, nas difíceis arenas institucionais que a democracia ainda nos oferece - ora dificultando, ora ignorando, mas oferecendo. Ao mesmo tempo, várias reflexões nos atravessam, e também às conferências. Outras estratégias são reivindicadas: diante do paradigma da exclusão e criminalização, podemos disputar subjetividades sobre drogas nas ruas (vida x doença); diante das campanhas midiáticas que promovem o não-acolhimento, podemos lutar por campanhas de educação sobre drogas em veículos de massa (autonomia x especialismos)... Talvez falte, ainda, algum modo de denunciarmos o entreguismo que muitas pessoas disfarçam ou toleram enquanto uma "luta estratégica". Precisarão chegar os think-tanks do mercado AntiDrogas em Brasília para reavaliarmos nossas estratégias? Para os representantes técnicos do mercado AntiDrogas não fará diferença alguma. Não importam as leis - desde que o desdobramento delas acabe se reportando, de alguma forma, aos procedimentos do mercado. Ocorre que o engessamento da pouca luta cotidiana nos serviços, por um acolhimento efetivo da realidade das drogas, não é algo que parte somente de Brasília, tampouco somente do eixo da Gestão, e nem deve ser identificada hoje em sujeitos políticos isolados.
Neste sentido, eis um belo motivo para que as pessoas que lutam contra o SUS comemorem as arenas democráticas. Desde a própria conferência que evidenciou a reforma nas políticas de saúde e engendrou no SUS, os interesses do mercado aprenderam a se retirar das cadeiras, lutando pelo Inamps até hoje nos bastidores. A estratégia é cada vez mais sofisticada. Em Porto Alegre, por exemplo, comemora-se aparentemente o tranquilo desfecho do desvio de 10 milhões de reais do SUS, em nome da precarização das relações de trabalho. Ao mesmo tempo, pelas ruas da cidade, uma pixação parece implorar: "protesto não é crime". Cartazes denunciando a gestão corrupta/conivente foram apreendidos. Sempre haverá um crime em favor do controle. Vivemos numa democracia.
Falar no desafio a ser enfrentado, portanto, é olhar mais cuidadosamente para o contexto de reivindicações políticas no Brasil. Em nosso caso, vale lembrar da existência de um dispositivo AntiDrogas legitimando e ressignificando todos os conceitos que tão demoradamente conquistamos, incluindo as próprias arenas "democráticas". Vale lembrar, também, que os sujeitos desta conquista fomos "nós" enquanto sujeitos históricos - não foram as leis, não foi a "Constituição Cidadã", não foram as entidades, muito menos as partidárias; que o diga o Partido dos Trabalhadores, que quando não usa do mesmo dispositivo AntiDrogas hoje para ganhar votos (como na campanha de sua atual presidenciável), acaba protagonizando omissões "estratégicas" por questões partidárias (exemplos previsíveis à vista). Lucrar votos é preciso, lutar de fato, não. Lutar por mudanças nas ruas, para estas pessoas, já pode ser quase visto como uma atitude conservadora. A questão é que essas ferramentas "democráticas" já nasceram velhas, pois a vida não está aí pra elas.
Então analisamos macropoliticamente, e constatamos que os CAPS-AntiDrogas já foram ressignificados pelo manicômio há muito tempo. Está sendo curioso analisarmos esse desejo pelos CAPS-AntiDrogas, bem como a sua abertura repentina, mesmo dentro das capitais, seja em parcerias público-privadas ou não. Há um voto, nestas conferências contemporâneas, contra a abertura de CAPS-AntiDrogas em municipios pequenos. No limite já entendemos que, caso cumpram com o esperado, os CAPS-AntiDrogas poderão ser muito mais interessantes do que os feios e anti-éticos manicômios clássicos. É que o mercado manicomial não deseja manicômios, deseja dinheiro; e numa lógica de varejo, lucra-se mais na quantidade. Por sua vez, os CAPS-AntiDrogas que já abriram e que ousam promover saúde no território são raros. Devemos lutar novamente por diretrizes de cuidado? Devemos lutar pela prática clínica de promoção, no território? Pois há um pressentimento de que, em breve, serão também cooptadas as noções de território, de "busca ativa"; de RD, de AT, educação popular, tod@s cumprindo os procedimentos mercadológicos. O futuro é agora, e o novo Plano Integrado (de combate) ao Crack e Outras Drogas, contando com consultórios de rua e CAPS-AntiDrogas, não nos deixa omitir esta realidade. A ideologia do "combate" está refutada nas leis sobre drogas. E em Porto Alegre, o Plano será estudado pela medieval equipe de pesquisas do CPAD (Centro de Pesquisas em Álcool e Drogas), notável centro de propagação da desinformação sobre drogas, onde os objetos de estudo ainda giram em torno da doença, e não da vida. Nada é por acaso, no orgânico mercado AntiDrogas.
Diante das estratégias limitadas, talvez tivéssemos de reconhecer que estamos diante de uma Gestão pouco empoderada, e de um movimento institucionalizado e envelhecido. Gestão pouco empoderada, porém, certamente não tem a ver somente com trajetórias políticas individuais. É uma questão que também nos diz respeito, enquanto movimento de pessoas preocupadas com a questão das drogas.
Dito isso, entraríamos em nosso 2º ponto. Algumas poucas resistências apontam para ele, embora não seja nenhuma novidade: é que estamos diante de uma questão moral, a moral AntiDrogas, que reifica o manicômio como paradigma, inclusive e principalmente entre pessoas que se dizem militantes do SUS. Isso é o mais preocupante: o inimigo mais poderoso somos nós mesmos.
Enquanto escrevo isto, avalia-se ainda um curioso momento da Conferência de Saúde Mental Intersetorial do RS. Muit@s delegad@s aplaudiram a justa supressão de propostas que legitimavam a idealização oportunista das Comunidades Terapêuticas diante do descaso na Saúde. E então, poucos minutos depois, muitas delas, incluindo-se militantes "do SUS", "antimanicomiais" e "emdefesadareforma", votaram contra uma proposta que reconhecia a relevância de marchas de usuários de drogas, como exemplo de instância onde a luta se potencializa, por uma clínica que compreenda a noção de autonomia. Talvez esquecessem que a Conferência na qual estavam também surgira como reivindicação de uma marcha de usuários - mas, em verdade, talvez ocorra que a "clínica da autonomia" pareça ser a grande alucinação (da saúde?) coletiva no momento. Podemos pensar que, se uma clínica da autonomia existisse como muitos a idealizam, certamente seria estranhada de tal maneira que não iria sobrar muita gente por aí a defendendo. Pessoas nas ruas reivindicam sua libertação. Seriam, então, por acaso, as pessoas preocupadas com as drogas, dependentes de pessoas que usam drogas? Se é este o caso, demandaria-se uma campanha educativa. O lema: "Manicomiais ou não - com alguma coisa em comum".
Clínica e política não devem jamais andar juntas, dizem os especialistas. É perigoso e antiético "nos deixar" afetar. Acontece que, seguindo à risca estes entendimentos, o "mundo da droga" ainda está sendo visto como o mundo dos outros, e não como o nosso; e acontece que diante das poucas coisas que conseguimos enxergar, no vasto universo das práticas culturais de usos de drogas (muitas delas infelizmente clandestinas), ainda teimamos em encarar o descaso na Saúde Pública com as drogas como uma mera questão de disputas entre diferentes paradigmas de cuidado. O que está em questão, em verdade, é a disputa entre paradigmas em relação à vida, numa sociedade complexa que demanda a nós (e não às pessoas que julgamos "dependentes") trabalhar nossas próprias dependências e vícios pré-conceituosos. Enquanto isso, resta atentarmos à velha clínica e à velha militância que seguirão resultando destes devires fascistas. Com ou sem RD, CAPS, consultórios de rua, acolhimentos, agenciamentos - e outros conceitos e "estratégias" que, sozinh@s, continuarão legitimando o lucrativo mercado AntiDrogas.
Rafael Gil Medeiros
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