PICICA: "Toda confissão é uma encenação. Esta encenação está sempre ameaçada por uma vontade de verdade, que se esforça por reduzi-la à uma manifestação da verdade do sujeito. É dessa redução, por exemplo, que se sustenta todo dispositivo psi. Há também outra possibilidade, a transformação dessa encenação numa experiência estética e afetiva. O procedimento de Coutinho é luminoso na medida em que evita essa redução dos seus personagens a simples sujeitos psicologizados, mas possibilita uma criação de um campo estético, convertendo essas narrativas em uma experiência erótica, nos dizeres do próprio diretor. Presenciamos um esforço de liberdade, de criação e de invenção. Um esforço que trabalha para além da distinção entre documentário e ficção, de registro de verdades e de criação artística."
As canções de Eduardo Coutinho
Published on outubro 31, 2011
O novo filme de Eduardo Coutinho, As
canções, é uma espécie de desdobramento daquilo que fora iniciado em
Jogo de Cena. Tanto lá quanto cá, são filmes que registram breves
depoimentos, vivências cotidianas, pequenos relatos afetivos. Num
primeiro olhar, porém, existe uma grande diferença entre as duas obras.
No trabalho anterior, existia uma espécie de dispositivo que colocava em
xeque a condição mesma do discurso documental: a mistura entre pessoas
“comuns” e atrizes embaralhava a noção de verdade que costuma sustentar
esse gênero fílmico. Uma verdade que sempre se sustenta pela condição
confessional do discurso. A verdade documental ocorre quando as pessoas
estão dispostas a se confessar diante das câmeras. O efeito desse
dispositivo era bastante intenso, embaralhando a condição confessional
do documentário, na medida em que não ficava mais claro o que era
simplesmente relato e o que era encenação. Em As Canções parece não
existir tal dispositivo. As pessoas filmadas aparecem apenas enquanto
tal, homens e mulheres que aceitaram ingressar no jogo documental,
confessando suas íntimas lembranças diante das câmeras. O que estrutura
essas narrativas é uma espécie de investigação sobre o vínculo intenso
entre música e memória. Todos os entrevistados foram escolhidos por essa
razão, para falar sobre a música que marcou a vida deles. É como se
estas canções funcionasse como um fio que aproxima o presente do
passado, entre o instante da entrevista e a lembrança que ficou para
trás. A tese do filme é que as canções trazem à presença aquilo que se
tornou ausente. O amor perdido, o pai morto, a juventude que passou,
etc. Nesse caso, As canções não seria nada mais do que um registro
dessas verdades íntimas, bem aos moldes de muitos outros documentários
que buscam apenas deixar falar, deixar confessar. Não é gratuito que o
próprio diretor mencionou, no breve debate após a sessão, que há quem
acredite que sua nova obra realiza um recuo em relação aos experimentos
realizados antes. Não vejo dessa forma. O que se passa é a introdução de
outro dispositivo, outra forma de questionar a própria natureza do
registro confessional. Novamente, a peça chave para o funcionamento
desse dispositivo é o palco. A filmagem não esconde sua artificialidade:
vez ou outra, acompanhamos a entrada e a saída daquele que será
entrevistado; vemos também as indagações de alguns, os mais tímidos, que
não sabem muito bem como se comportar diante das câmeras. O que dizer, o
que lembrar, como lembrar? São as dúvidas que aparecem ocasionalmente,
que se destacam nos pequenos gestos dos entrevistados. Aos poucos,
percebe-se que estamos diante de uma grande encenação, cada um a sua
maneira, assume e desenvolve um papel, uma reconstrução de si próprio.
No palco, porém, não estamos diante de um espetáculo tradicional, como a
leitura de um texto dramático, mas sim uma encenação de experiências
afetivas, de narrativas de vida. Essa encenação é uma reconstrução, uma
reinvenção de uma memória, de uma ausência. É por isso que a música se
torna importante: é por meio dela que se encena, se reinventa a si
próprio. É como se a própria confissão não passasse de um engodo, não no
sentido negativo de mentira ou falsidade, mas sim como uma tentativa de
criar um personagem que chamaríamos de subjetividade ou de intimidade. A
música ocupa o lugar do texto dramático, do suporte que permite a
criação desse personagem que se confessa diante das câmeras. Não é
gratuito que os entrevistados masculinos e os femininos escolham temas
tão distantes. E mesmo a escolha das músicas, mesmo quando se repetem,
aparecem de maneiras totalmente diversas. A vontade de se reinventar é
também a criação de uma autoimagem e nisto parece ser bem difícil, por
exemplo, que um homem aceite colocar-se na posição de corno, do
abandonado. Já para as mulheres, parece ser muito mais fácil assumir
este papel. Existe uma autoimagem de gênero muito delineada, como se
fosse esperado enxergar mulheres que amam exageradamente e não são
retribuídas. Essa reflexão dos papéis de gênero, por si só, já valia o
filme e merecia uma longa discussão (que não é exatamente o meu foco
aqui). De qualquer modo, o que me interessa é que esse novo
procedimento, longe de ser um recuo, me parece muito mais uma
radicalização. É como se ele levasse ao limite extremo a desconstrução
do valor de verdade que damos para nossas confissões. Toda confissão é
uma encenação. Esta encenação está sempre ameaçada por uma vontade de
verdade, que se esforça por reduzi-la à uma manifestação da verdade do
sujeito. É dessa redução, por exemplo, que se sustenta todo dispositivo
psi. Há também outra possibilidade, a transformação dessa encenação numa
experiência estética e afetiva. O procedimento de Coutinho é luminoso
na medida em que evita essa redução dos seus personagens a simples
sujeitos psicologizados, mas possibilita uma criação de um campo
estético, convertendo essas narrativas em uma experiência erótica, nos
dizeres do próprio diretor. Presenciamos um esforço de liberdade, de
criação e de invenção. Um esforço que trabalha para além da distinção
entre documentário e ficção, de registro de verdades e de criação
artística. Talvez seja por isso que a obra produza um efeito catártico
tão grande nos espectadores, apesar da simplicidade dos relatos, é
difícil não se emocionar.
Fonte: Ensaios Ababelados