novembro 02, 2011

"Filmar uma história", por Rodrigo Cássio

PICICA: "Certo diretor baiano, formado no passado ciclo dos anos 1950-60, afirmava que não precisamos mais de cineastas revolucionários e politizados do que de filmes que se fazem políticos quando revolucionam o nosso olhar para o mundo. E é no lugar do público,  dessa vez sem o perigo de confundi-lo com uma massa inerte, que podemos sempre perguntar: estarão estes filmes a caminho? "
Filmar uma história


Cartas do Kuluene, do diretor Pedro Novaes

Talvez possamos dizer que o cinema goiano é um irmão mais jovem comparado aos cinemas de outros Estados do Brasil. Se a história dos filmes brasileiros é contada em ciclos, nunca houve propriamente um momento em que Goiás despontasse como centro irradiador dos principais filmes nacionais. Nunca houve um ciclo goiano de cinema, diferente do que se deu, por exemplo, em Cataguases (MG), na década de 1920, ou na Bahia entre 1950 e 1960.


No entanto, ao mesmo tempo, seria uma imprecisão negar aos filmes goianos um lugar no cinema nacional. Inclusive porque precisamos lidar com as mesmas dificuldades que marcam a carreira da maioria dos filmes de outros Estados, a despeito de suas origens e da incontestável relevância de muitos deles, sempre que não contam com um pesado aparato de visibilidade.


A distribuição dominada pelo mercado do entretenimento condiciona o consumo, dificultando a presença dos filmes onde eles precisariam estar para se realizarem socialmente: na experiência do público. Pacific, o excelente documentário pernambucano de Marcelo Pedroso, só foi exibido em Goiânia por uma semana de outubro, em função do Projeto Vitrine do Cine Cultura. Se a qualidade e inventividade do filme definissem a sua presença nas telas, Pacific deveria ocupar as dezenas de salas destinadas aos repetitivos blockbusters de Hollywood.


Por conta disso, é preciso buscar o nosso cinema em outros espaços, em outras possibilidades de contato que estão além das salas comerciais, como os cineclubes, festivais e mostras. Como essa busca não é facilitada pela mídia e a publicidade, que superexpõem os mesmos filmes dominantes do circuito exibidor, o público goiano tende a não perceber que obras recentes produzidas por aqui estão construindo carreiras interessantes.


Alguns desses filmes poderiam ser citados neste final de 2011, como Número Zero, de Cláudia Nunes, que, em duas versões (curta e longa), foi selecionado em mostras oficiais de países como México, Chile, Costa Rica, Uruguai e Egito. Igualmente notável é a trajetória de Julie, Agosto, Setembro, do jovem diretor Jarleo Barbosa, que percorreu o Brasil em 2011, marcando presença em eventos conhecidos do grande público, como o Festival de Gramado, iniciando carreira no exterior com seleção para o 3º Festival de Filmes Latino-Americanos de Flandes, na Bélgica. Nesse momento, na Mostra Internacional de São Paulo, a maior do país, outro filme goiano deste ano é exibido: o longa-metragem Cartas do Kuluene, de Pedro Novaes.



Julie: um olhar de estranheza para a cidade


A protagonista de Julie, Agosto, Setembro é uma jovem suíça que vem a Goiânia para estudar, e mantém uma relação de estranheza com a cidade.  Julie é uma personagem que diz algo importante sobre o próprio ato de fazer filmes em Goiânia. Pois é digno de nota – e de reflexão – o fato de que as obras citadas sejam vistas em outras cidades e países, ultrapassando limites regionais e confirmando seus potenciais, a despeito de terem se tornado conhecidas pelo grande público da cidade.


Claro que a pouca visibilidade do que é mais consistente na produção da própria cidade é algo preocupante. Mas nesse problema se instala uma divisa que parece condensar as questões de política cultural e de representatividade da categoria artística, tão essenciais quando se trata de produzir cinema, em qualquer lugar. É que a consistência dos filmes não depende da oficialidade que recobre os números atravessados e as premiações que o poder público faz questão de exibir, como se o glamour vulgar do cinema pudesse ser transposto diretamente para as urnas. É preciso olhar com estranheza para a ideia de “identidade goiana”, como fez Julie, se quisermos dar um sentido a ela.


Os bons filmes goianos – e eles são “goianos” porque revelam as tensões codificadas nessa identidade – não precisam falar diretamente de nós, nem serem agraciados por júris de atenção duvidosa. A consistência destes filmes está ligada a uma consciência de que aquela história contada em ciclos pode já não servir em um presente no qual as tensões se deslocaram para a própria imagem, em vez de serem atingidas por meio das imagens. Quanto mais o cinema é confrontado pelo cerimonial do espetáculo vigente, mais o criador de novos filmes precisa ir onde o cinema está. Mais ele precisa confrontar tais imagens, com outras novas e poderosas, sob o risco de, se não o fizer, acabar engolido pelo enganoso auto-elogio do mesmo espetáculo.


Certo diretor baiano, formado no passado ciclo dos anos 1950-60, afirmava que não precisamos mais de cineastas revolucionários e politizados do que de filmes que se fazem políticos quando revolucionam o nosso olhar para o mundo. E é no lugar do público, dessa vez sem o perigo de confundi-lo com uma massa inerte, que podemos sempre perguntar: estarão estes filmes a caminho?
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Publicado originalmente no jornal O Popular


Fonte: Vistos e Escritos

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