janeiro 04, 2012

"Hollanda, a sogra da cultura do PT", por Bruno Cava

PICICA: "O Partido dos Trabalhadores tem responsabilidade direta nessa sabotagem. Seu setor cultural vive na indigência política e teórica, apesar de algumas inteligências dissonantes, como Carlos Henrique Machado. De resto, na maioria se limita a reproduzir um discurso cepecista retrógrado e esperar a sua vez nas filas e peixadas para DAS. Arrivistas de partido, sem qualquer fundo ideológico senão a fidelidade canina à própria carreira, ou seja, ao próprio umbigo acoplado a um projeto de poder. E não vão cortar o cordão umbilical pelo qual se alimentam do troco com que são comprados pelo establishment. Uma indigência mesquinha e pragmática, fruto do afastamento das bases sociais, cada vez maior quanto mais tempo o partido se vicia na situação. No campo cultural, para não desaparecer no vácuo do esquerdismo em geral, o partido precisa renovar sua militância e seus núcleos." 
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"O resultado desse cenário é a miséria em que submergiu o MinC, vendido a troco de banana aos coronéis da cultura. Esses tão bem representados pelo ECAD e pela Lei Rouanet. E com respaldo de Dilma, do governo Dilma e do PT, numa mistura de vulgata gramsciana e carreirismo rasteiro. Causa perplexidade como os mesmos petistas que se regozijam com o tão-falado livro sobre a privataria tucana, fingem que a privataria na cultura dilmista não é com eles. Recusam-se a ver o elefante na sala. Para o MinC deles, continuar não é repetir. É voltar à estaca zero. Em 2011, nenhum ministério fez mais jus ao famoso epigrama: plus ça change, plus c’est la même chose. La même merde, o leitor me permita acrescentar."


O ano acabou e Ana continua ministra da cultura de Dilma. Frise-se o “Dilma”. A presidenta manteve Ana de Hollanda no cargo porque, na sua ótica, ela está indo muito bem. Não me admiraria ela sobreviver à iminente reforma ministerial. Politicamente abobada, a ministra está mesmo em harmonia com o projeto do governo, com o Brasil Maior. E além disso, é o tipo de liderança que Dilmão mais precisa: alguém que não exprima as bases sociais de seu campo de atuação e a partir delas formule novas demandas e problemas ao governo, mas, sim, que simplesmente fique na sua, acatando cortes, diretrizes e ordens sem ponderar.


A presidenta costuma dizer que Ana foi indicada por representar setor importante da cultura nacional, mas o que Dilma parece preferir são funcionários acríticos, que trabalhem como diligentes técnicos ou burocratas de terceiro escalão do ministério das Minas e Energia. Ir além disso é insubordinação: dá-lhe soco na mesa e pito da chefa, todos abaixam a cabeça. O gênio de Ana cai como uma luva nessa posição insossa. Mesmo as figuras que (supostamente) fariam a articulação com as bases, como Antônio Grassi e Vitor Ortiz, têm funcionado como joãos bobos. Fingem ouvir as críticas e dialogar, mas depois do baque voltam ao mesmíssimo lugar com o mesmo sorriso amarelo.  Quando tanto se esforçam para provar que tudo vai bem, é porque tudo vai mal. A dama protesta demais.


Durante o governo Lula, o ministério da cultura foi uma das poucas pastas com políticas radicalmente inovadoras e democratizantes. É sempre importante disputar essa memória, contra a campanha de descrédito lançada pela gestão de continuidade (!). Desde Gil, era mesmo uma experiência singular, mundialmente valorizada. No governo anterior, o MinC foi ocupado por movimentos sociais, coletivos culturais, minorias da metrópole e do interior, artistas e intelectuais que efetivamente pensam os muitos Brasis, a sua intrincada rede de fluxos e produções. Resultado da multiplicação do do-in antropológico de Gilberto Gil, mais a cultura de pontos & redes de Célio Turino, mais a democratização das verbas e editais (num tom francamente lulista), mais a ocupação digital das tecnologias e processos. Um espaço produtivo de contrapoder, hacker e índio. Pela primeira vez, a cultura deixou de ser apenas balcão para negócios dos amigos e dos amigos dos amigos, para as empresas que a encaram como mero setor econômico. Até 2010, de modo ainda incipiente, o MinC e suas políticas passaram à condição de qualificador transversal das políticas públicas. Valorizaram a cauda longa de produtores, a espessa base da pirâmide dos trabalhadores de cultura. Não só a cultura como economia, mas como política e antropologia, como multiverso, como biopolítica. Em suma, enxergou a cultura como processo, na sua acepção plena e generosa. Isto é, um processo imanente à sociedade de produção e circulação de valores, afetos, perspectivas, formas de vida e mundos inteiros. Sim, tudo isso aconteceu no governo Lula e éramos felizes e sabíamos.


Mas a história deu marcha ré. Em vez de potencializar o processo de produção como um todo, capilar, diagonal, Brasil adentro e afora, múltiplo e democrático, o foco passou a ser a distribuição para consumo, como linha de chegada dos produtos e marcas. A cadeia produtiva da cultura, tão imensa, passou a ser encarada somente como fabricação de mercadorias para a sua posterior marquetagem. Novamente, como num passado recente, voltou-se a tomar a sociedade brasileira como receptáculo dessa cultura fabricada e mercantilizada por quem sabe, por quem cria, por quem domina o negócio, por quem empreende criativamente no mercado. É o que dizem. Dêem o dinheiro para os profissionais, como queria Barretão. E o MinC dá.


Jamais a palavra sustentabilidade serviu para tanta farsa. Sustentável é aquele que consegue se virar como a indústria cultural, isto é, intermediar e explorar a cultura, comandar o processo de produção, monopolizá-lo a montante e a jusante. Ainda que sejam novos empreendimentos em rede, interativos, 2.0, mas ainda como empresa de controle dos mercados e da força de trabalho. Não preciso dar exemplos distantes para pôr os pingos nos is da sustentabilidade. O leitor tome este blogue como exemplo. Para o Quadrado dos loucos, — agente cultural que é, — sustentabilidade seria enchê-lo de anúncios idiotas, subordinar-se a algum portal com filtros e formatos, ou adotar o copyright e cobrar o acesso aos textos. Sustentabilidade é outro nome para a destruição da produção comum, colaborativa e transversal, a fim de subordinar a produtividade social aos vampiros, tão bem preparados pelos seus MBA para explorá-la por cima. Claro que essa expropriação precisa ser legitimada de alguma forma.


Daí, em 2011, tantos ideólogos para a parafernália discursiva de economia criativa, do brand management, do papo dos empreendedores criativos, da crowd economy e todos quantos slogans, — tão vazios quanto o projeto do governo para a cultura. Um enorme zero político-ideológico. Basta ler sites orgânicos do novo MinC, como o Cultura & Mercado, para encontrar essa sofistaria da espécie mais rentável: conferir legitimidade ao saque puro e simples da produção cultural brasileira em todos os níveis.


Está-se valorizando a cultura brasileira, dizem. Ou seja, a mesma nomenklatura de sempre, a mesma Casa Grande dominada por grandes nomes do passado que já nem criam mais. Ou então os novos produtos massificados do pop e do sertanejo que, — apesar da força dessas expressões musicais, — têm homogeneizado a oferta num punhado de medalhões. A cultura é amealhada para a monocultura, na república dos oligarcas.


Também dizem que a cultura brasileira tem de aprender a competir lá fora, exibir a sua vitrine num mercado globalizado e altamente competitivo. Soberania nacional também na cultura. Mas, nos bastidores, o país remete dois bilhões de dólares aos EUA para pagar direitos autorais às Big Four (Warner, Sony, EMI e Universal), e aufere somente 25 milhões (1,25%) de receita. [fonte: Pablo Ortellado] Talvez essa balança comercial lance uma luz sobre o fato de o governo brasileiro estar cada vez mais afinado com o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA). Refiro-me ao tratado internacional que pretende impor a todos o marco primeiromundista e da OMC para a propriedade intelectual, seu controle e fiscalização. Grande negócio, mas não para a cultura por aqui gerada, — e muito menos para quem faz download de música ou filmes, tira xérox de livros, informa-se pelas novas mídias, ou produz cultura a partir da remixagem. Uma minoria, né… Em 2011, um dispositivo do ACTA foi incorporado pelo MinC no PL dos direitos autorais, no caso do notify and takedown. Nas palavras da própria Ana: não vai dar mesmo para o brasileiro montar grandes CDtecas.


Isso revela também um paradoxo do nacional-desenvolvimentismo. Em miúdos: desenvolver a indústria, gerar empregos, aumentar a demanda interna, favorecer as exportações, substituir as importações e fortalecer o capital nacional no mercado global, atraindo investimentos. O paradoxo está em que esse mesmo desenvolvimentismo que se diz nacional depende de uma aliança nada oculta com grandes grupos internacionais. Nunca o internacionalismo foi tão presente quanto no discurso de soberania nacional, onde o jogo é toma lá, dá cá. Em síntese, mais do mesmo de 500 anos de país colonizado por suas próprias elites econômicas, tão bem aninhadas com as elites globais.


O que havia de melhor — o programa da cultura viva, da cultura digital, os pontos de cultura, de mídia livre, interações estéticas, ação griô etc — tem sido sistematicamente sabotado e boicotado no governo Dilma. Não é exagero apontar uma guinada de 180 graus, nem colocar o MinC como a pior das piores áreas do governo Dilma. É isso mesmo.


Voltou-se à linha política esposada pelos governos da década de 1990, como na época do ministro neoliberal Francisco Weffort. Tem sido o paraíso fiscal da Lei Rouanet, aliás, uma lei de Collor, voltada para a grande indústria cultural, os grandes negócios e os megaventos. Ela não só garante o repasse do grosso das verbas aos conglomerados midiático-culturais (como a Globo) e os bancos (como o Itaú), como lhes atribui um poder quase total sobre onde e como aplicar o dinheiro (público). Dupla privatização: do recurso e da decisão, em mais uma dialética vazia entre público e privado. Ao passo que o monopólio sobre os direitos autorais continua abiscoitado pelas multinacionais, que é quem manda nas associações de gestão coletiva, que é quem manda no ECAD, que, por sua vez, por força de lei federal, é quem manda com exclusividade na sistemática de arrecadação e distribuição, e quem decide manter toda essa vampirização da cultura. Resulta disso um programa bolsa família ao contrário: uma exploração difusa dos pequenos produtores e artistas (que todavia constituem 99%), concentrando a contribuição compulsória no topo da pirâmide. Os intermediários do ECAD (advogados e executivos apadrinhados pela indústria cultural) agradecem com cerca de 25% a título de “taxa de administração”, aplicada sobre as muitas centenas de milhões arrecadadas por ano.


Que outro nome para isso senão latifúndio cultural, metáfora onde o MinC entra como jagunço, sua linha política como da UDR, e os trabalhadores da cultura como sem terras? Quanta miséria. Não chegamos sequer ao capitalismo liberal de livre competição (se existir isso), como promovido pelos ultraliberais Yochai Benkler, a turma do Creative Commons e os FGV boys. Que dirá então de um governo de esquerda, voltado para os pobres. Nem sombra. Não poderia deixar de soar como ironia: a cauda longa de agentes e protagonistas culturais que entrou de cabeça na campanha de Dilma foi desprezada em suas demandas e formulações contra o ministério, enquanto jornalões e emissoras serristas até a medula tiveram as suas várias exigências ministeriais atendidas. Imediatamente. Para Dilma, quem segura a espada no pescoço, afinal, não seriam os cidadãos, mas a grande imprensa que não nos representa. Sintomático, novamente.


O Partido dos Trabalhadores tem responsabilidade direta nessa sabotagem. Seu setor cultural vive na indigência política e teórica, apesar de algumas inteligências dissonantes, como Carlos Henrique Machado. De resto, na maioria se limita a reproduzir um discurso cepecista retrógrado e esperar a sua vez nas filas e peixadas para DAS. Arrivistas de partido, sem qualquer fundo ideológico senão a fidelidade canina à própria carreira, ou seja, ao próprio umbigo acoplado a um projeto de poder. E não vão cortar o cordão umbilical pelo qual se alimentam do troco com que são comprados pelo establishment. Uma indigência mesquinha e pragmática, fruto do afastamento das bases sociais, cada vez maior quanto mais tempo o partido se vicia na situação. No campo cultural, para não desaparecer no vácuo do esquerdismo em geral, o partido precisa renovar sua militância e seus núcleos. Acompanho o debate de perto no Rio de Janeiro, de onde saíram alguns assessores do novo velho MinC: o sucesso das gestões no governo Lula teve pouco (rigorosamente nada) a ver com o PT. Então é preciso somar ao senso de apparatchik um pouco de dor de cotovelo, por não protagonizar o melhor governo brasileiro em políticas culturais que já houve (na verdade, o único).


O resultado desse cenário é a miséria em que submergiu o MinC, vendido a troco de banana aos coronéis da cultura. Esses tão bem representados pelo ECAD e pela Lei Rouanet. E com respaldo de Dilma, do governo Dilma e do PT, numa mistura de vulgata gramsciana e carreirismo rasteiro. Causa perplexidade como os mesmos petistas que se regozijam com o tão-falado livro sobre a privataria tucana, fingem que a privataria na cultura dilmista não é com eles. Recusam-se a ver o elefante na sala. Para o MinC deles, continuar não é repetir. É voltar à estaca zero. Em 2011, nenhum ministério fez mais jus ao famoso epigrama: plus ça change, plus c’est la même chose. La même merde, o leitor me permita acrescentar.



Fonte: Quadrado dos Loucos

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