janeiro 06, 2012

"O futuro do Brasil é o Xingu agora", por Bruno Cava

PICICA: "Brecht certa vez disse que as lutas frequentemente pedem formulações grosseiras. Que brutalizar uma discussão pode ser a melhor tática. Mas na fala de Eduardo, desculpe-me Brecht, o antropólogo conseguiu uma síntese ao mesmo tempo simples e profundamente conceitual, e sem brutalizar, sem perder a ternura. Mostra uma vez mais como o simples e o complexo, o básico e o elaborado não se opõem. Questão de poética."

O futuro do Brasil é o Xingu agora
Muitas vezes os debates chegam a níveis sofisticadíssimos que faz falta uma formulação sintética, inclusive com sabor de ingenuidade. Têm horas que o óbvio se torna subversivo. O leitor veja o caso da construção da usina de Belo Monte. Tantos relatórios de 200 páginas sobre a matriz energética, tantos argumentos elaborados de prós e contras, estudos socioambientais, estatísticas geográficas e projeções econométricas… é para inglês nenhum botar defeito. Mas quem sabe seja caso de buscar o essencial. Poderia ser: olha, não é complexo, é só parar de tacar fogo na Amazônia, respeitar o espaço dos moradores e não destruir o ambiente. Brecht certa vez disse que as lutas frequentemente pedem formulações grosseiras. Que brutalizar uma discussão pode ser a melhor tática. Mas na fala de Eduardo, desculpe-me Brecht, o antropólogo conseguiu uma síntese ao mesmo tempo simples e profundamente conceitual, e sem brutalizar, sem perder a ternura. Mostra uma vez mais como o simples e o complexo, o básico e o elaborado não se opõem. Questão de poética.
O Brasil não é mais o país do futuro! Agora, é a nossa vez. Não é mais a nação do atraso, que não pode ser séria. Não é mais vergonha se declarar brasileiro nas lojas e pontos turísticos de Nova Iorque ou Paris. É, gente, o brasileiro agora é respeitado. Brasileirização não é mais sinônimo de favelização do mundo. Não cabe mais a sacanagem que fizeram com a gente no filme Brazil (1985), de Terry Gilliam.  Agora, somos a sexta economia, sede da Copa e das Olimpíadas. Terra de Belo Monte e Pré-Sal, fiadores de um porvir de glórias. As décadas perdidas ficaram pra trás. Uma sucessão de êxitos nos trouxe aqui: redemocratização, controle da inflação, combate da corrupção, crescimento econômico e inclusão social. Tudo é possível: elegemos um sociólogo ateu, um operário nordestino, uma guerrilheira inquebrantável, — esculpida como gestora eficiente e impoluta. Presidenta séria para um país sério. Nós, o Brasil do terceiro milênio, quanto orgulho de cantar o hino em Teresina e chorar de emoção. Momento dramático, explica o locutor.
Qual não será o anticlímax patriótico quando se concluir que, em vez de país do futuro, o Brasil está virando o país do passado. Se o futuro estava contido no horizonte de seu progresso, então não era futuro, mas imitação. Como papagaios, imita-se a trajetória dos Estados Unidos, da Europa Ocidental, do Primeiro Mundo. Descoloniza-se para virar metrópole e reproduzir os mesmos preconceitos, ignorâncias e assimetrias. Derramar sobre o Brasil do futuro uma imensidão de pastos inférteis, plantações de soja, estradas, hidrelétricas e parques de extração e processamento de minério. Explorar tudo o que o país oferece para gerar riqueza e distribuí-la aos brasileiros. Transformar a Amazônia em Iowa e subsumir o multiverso amazônico no paideuma estiolado do brasileiro. Estiolamento causado pela velha mídia, pelo emprego subordinado e que totaliza o tempo de vida, pelo shopping, pelas novas promessas de salvação divina ou terrena.
Mas a colonização nunca é um processo de fora pra dentro. Não vem de além-mar para expropriar a nossa riqueza natural. Oswald sabia muito bem que o colonizador sempre esteve dentro e precisava ser devorado. É o índio que devora o branco e se articula nas redes, é o branco que devora o índio pra lutar contra o branco, à moda do Bacharel da Cananéia. Afinal, quem coloniza a terra são suas próprias elites econômicas, aninhadas às elites globais. Assim foi a Terra Brasilis, dos sesmeiros aos banqueiros da Av. Paulista, dos barões do café ao agronegócio, dos empreendedores industriários à new economy, dos cavaleiros de Cristo aos senhores parlamentares, dos missionários jesuítas aos empresários pentecostais. Mas os escravos são os mesmos. São os índios, negros, colonos calabreses e japoneses, caboclos, sertanejos, favelados, rappers, funkeiros, poetas da rua, angolanos, bolivianos — e um comprido etcétera que nem podemos enxergar. Para os pobres, não faz diferença descolonizar para virar metrópole, porque a metrópole nunca esteve distante. Elas sabem que a fronteira entre colonizador e colonizada não é uma questão nacional; não caem no conto do vigário que os imperialistas nos dominariam do outro lado do oceano. Eles não são bobos anti-imperialistas e sabem muito bem chamar o inimigo pelo próprio nome.
Ah, que interessante, Don Manuel, esses paninhos, comidas, espelhinhos, o consumo disso e daquilo… mas, e aquela espingarda ali, quanto é?
Então, futuro mesmo, só valorizando o que o Brasil já é. Mas um outro Brasil. Ou melhor, outros. Muitos outros. Os brasis menores do Xingu, onde se começou a organizar o movimento indígena, do Acre, da Roraima, da Raposa do Sol, da Amazônia inteira, os sertanejos e os caiçaras e muitos outros. Mas também os índios urbanos: os pobres nas periferias, favelas, ocupações, internets e quebradas, que inventam e reinventam modos muito ricos de viver e produzir. Essa riqueza multinatural pode brasileirizar o futuro. Isso que os Estados Unidos e a Europa nunca foram nem nunca serão. Os governos pretendem aplainar os muitos Brasis num único, o Brasil Maior, com a benção de emotivos patriotas. Ou seja, acabar com isso de índios, negros, caboclos, ribeirinhos, angolanos, bolivianos… Isso só serve como folclore e diversidade cultural, mas como cidadania não importa: é tudo brasileiro e ponto! Ou não é, e aí não pode ficar no território nacional. Ou se enquadra na identidade brasileira do Brasil Maior, ou é imigrante ilegal, é gringo sans papiers.
Pretendem proletarizar a todos, gerar empregos enquadrados para todos nessa colonização intensiva e extensiva, a cada um o seu lugar e o seu filão, incluir socialmente a todos. Brasil para Todos deixa de ser muitos Brasis, mas todos num único Brasil Maior. Isto é, inscrevê-los num espaço homogêneo que quantifica as formas de vida e nivela naturezas culturais na cidadania e direito estatal. Quantificar para medir impactos e compensações, custos e benefícios, danos e indenizações, riqueza e distribuição. O modelo de desenvolvimento reduz tudo, todas as desmedidas dessa imensa riqueza que é o único futuro real, à única perspectiva: do colonizador, da metrópole, da modernidade, do capitalismo.
Se existe um fio vermelho na antropologia perspectivista de Eduardo Viveiros de Castro está nessa devoração que ele propõe do desenvolvimentismo. Não significa nenhuma nostalgia do bom selvagem, — algum paganismo preservacionista para que as minorias continuem protegidas em suas (inexistentes) identidades culturais ou habitats naturais. Está-se falando não só do direito de virar outra coisa que não o brasileiro, mas de reinventar o brasileiro como muitos. É preciso assumir as perspectivas muitas, — dos índios, negros, bolivianos, favelados etc etc — para reinventar toda a métrica, a cosmologia, a antropogênese.
Não é colocar a sociedade contra a economia, buscando tensionar o estado num sentido, numa histeria esquerdista que contorna o fato de sociedade, economia e estado funcionarem juntos. Nem investir numa ecologia da sustentabilidade, que no fundo não passa de uma nova segmentação do capitalismo, a dos produtos ecológicos, de alimentos orgânicos a festivais de rock. Trata-se, eu penso, de destruir, pelas mobilizações e tumultos, a própria base antropológica disso tudo. A começar pela percepção do colonizador de que a finalidade do homem é o trabalho e, do trabalho, a riqueza; enquanto esse homem é colonizado; o trabalho, alienado; e a riqueza, algo exterior e estranho ao próprio homem.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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