PICICA: "Por que a Cultura importa? Foi no campo
da Cultura, e não na corrida espacial ou armamentista, que os Estados
Unidos tomaram a dianteira na Guerra Fria em relação à falecida União
Soviética -- e a última encontrou seu desfecho triste, por sua crise
interna. Em suma, o principal arsenal de Washington é, há muito, sua
indústria de entretenimento e sua política cultural (espertamente
invasiva): o que moldou o mundo à imagem americana é, justamente, o
imaginário produzido por sua indústria que, docilmente, introjetou seus tipos de formas de vida; não é mais possível imaginar uma história de amor sem fazer referência a um filme de Hollywood, como bem observam Negri e Hardt em Commonwealth."
A Cultura, a Classe sem Nome e o MinC de Marta
Carnaval -- Carybé |
A questão da Cultura é essencial. Não à toa, ela tem sido alvo de
intensos debates no Brasil, sobretudo no governo Lula, na passagem de Gilberto Gil pelo
Ministério da Cultura. Pela primeira vez se deflagrou uma política de
democratização cultural, rompendo a barreira da visão da "cultura" como
mero enfeite -- ou apenas um instrumento para alavancagem da indústria
de entretenimento massificada. Um dos eixos dessa transformação foi a
execução do programa Cultura Viva, idealizado por Célio Turino, que resultou nos Pontos de Cultura. O processo se seguiu durante a gestão de Juca Ferreira, mas atolou com a nomeação de Ana de Hollanda por Dilma. As políticas democratizantes deram um giro de 180 graus, passando para o lado da defesa do lobby
da grande indústria do entretenimento para o horror de ativistas da
área. Ana cai -- sob a pressão de movimentos da área, declarações mal
dadas e o jogo das eleições municipais --, Marta Suplicy ascende e uma
nova rodada de lutas se inicia.
Antes, uma breve recapitulação. Por que a Cultura importa? Foi no campo
da Cultura, e não na corrida espacial ou armamentista, que os Estados
Unidos tomaram a dianteira na Guerra Fria em relação à falecida União
Soviética -- e a última encontrou seu desfecho triste, por sua crise
interna. Em suma, o principal arsenal de Washington é, há muito, sua
indústria de entretenimento e sua política cultural (espertamente
invasiva): o que moldou o mundo à imagem americana é, justamente, o
imaginário produzido por sua indústria que, docilmente, introjetou seus tipos de formas de vida; não é mais possível imaginar uma história de amor sem fazer referência a um filme de Hollywood, como bem observam Negri e Hardt em Commonwealth.
O centro de gravidade não está no medo, mas na esperança (e mais e mais na pretensão de segurança)
de viver tal e qual -- boa parte do que foi operado em favor da
hegemonia norte-americana, por sua vez, pouco teve a ver com invasões e
golpes (embora não possamos exclui-los), mas sim com condutas
espontâneas, no nível macro e micro, causados pela maneira como o american way of life foi naturalizado. Mas não é a forma de viver americana em um sentido nacional -- eles contra nós --,
é a forma de viver americana como uma das hipóteses de modelo de vida
adequável e útil para realizar o Capitalismo. A Rede Globo não repete
essa estética pelo bem de Washington, mas, antes de mais nada, pelo
Capitalismo.
Uma vez rompida a Guerra Fria, aquela estética extravasa as fronteiras
nacionais americanas. Com a Globalização, o modelo americano torna-se
global e precisa cada vez menos dos Estados Unidos em si. Um filme
chinês que exalta a glória dos noventa anos do Partido Comunista local tem, também, estética hollywoodiana --
e não há nada estranho nisso. Há um Império global que nasceu do ovo
americano, mas não se confunde mais com ele com tanta exatidão. Se a
realidade funciona de um modo dialético é difícil dizer, mas o
capitalismo certamente o faz. Ele se autossupera e se ultrapassa a todo
instante.
Por outro lado, os países socialistas ao longo do século 20º, grosso
modo, insistiram que a chave para a libertação estava na tomada do
Estado para, assim, assumirem o controle do progresso da civilização,
dando um sentido outro aos seus rumos -- processo do qual, automaticamente,
resultaria uma cultura nova. Não resultou em coisa alguma como sabemos.
É a cultura que dita as regras dá linha no processo civilizatório, é o
discurso, a representação. Inclusive porque a civilização é só uma das
múltiplas possibilidades da cultura. A civilização capitalista demanda
uma cultura capitalista para que ela funcione no seu avanço sem fim.
No Brasil, existem dois vetores muito fortes no campo. Um é o da grande
indústria do entretenimento, cujos tipos de formas de vida esboços
remetem à manutenção do que está posto, outro, é uma animada e potente
cultura popular. A hegemonia cultural dos grupos de mídia tradicionais
no Brasil -- oligopólios familiares, a bem da verdade -- moldou os rumos
da democracia brasileira. Nós nos informamos, nos imaginamos e nos
sentimos de acordo com a produção de formas de vida ditada pelo grupos A
ou B, com interesses bastante pontuados. É uma grande indústria,
forjada na Ditadura Militar e que chega ao ápice com o Neoliberalismo --
a Ditadura não destruiu a música brasileira, mas o privatismo dos anos
90 sim. E isso tem implicações muito claras na funcionamento da nossa
política.
Há, inclusive, uma confusão recorrente: como se a massificação galopante
da Cultura brasileira nos últimos anos tivesse a ver com ascensão
social atual. Como se a ascensão selvagem da classe sem nome
fosse a ascensão do massificado, do pobre enquanto o ontologicamente
deficitário. Nada mais falso. A massificação cultural corta toda a
sociedade, ditando padrões, de maneira universal, para o jovem da
periferia e para o advogado rico do bairro nobre. A massa não é o pobre
que vê suas condições excederem os limites da Lei da Casa Grande, ela é o
processo de homogeneização ao qual todos são reduzidos, igualados
apesar de suas diferenças, o que permite a manutenção de assimetrias
brutais. Quem assiste ao pior talk show da televisão brasileira é a
classe "a" também.
A massificação é um processo anterior e, acrescentaria até, antagônico a
tal ascensão, uma vez que é um processo de sujeição que pretende,
inclusive, dar um jeito nessa classe, pondo-a sob os limites de uma nova
ordem. Trata-se de um vetor que busca capturar a potência dessa classe,
sujeitando-a: quando uma telenovela "insere" e "descreve" a nova
classe, ela é o faz submetendo-a a um regime que pretende determina-la,
prescrevedo seu funcionamento. A classe sem nome passaria a ser isto, é
uma "nova classe média", que se comporta, veste e ama de um modo
determinado.
A massificação tem pouco a ver com exarcebação do consumo, mas
sim com regulamentação do consumo: você irá consumir aquilo e aquilo
outro, desta e daquela forma. Mas você não consumirá jamais os sujeitos e
sujeições que o sistema usa para determinar a forma de produzir e de
consumir os objetos. É uma vedação ao consumo. Por isso é preciso consumir mais e mais,
devorar os objetos e também -- e sobretudo -- os sujeitos e sujeições. E
[poder] consumir cada vez mais é enfrentar a máquina, não alimenta-la. O
cenário atual é ainda de subconsumo.
Então é dentro de um cenário de incertezas não só internas ao MinC, mas também das mudanças ocorridas nos últimos anos, que Marta Suplicy
assume a pasta. Não são poucos os problemas internos e os desafios. A
vitória recém-conquistada da aprovação do Vale-Cultura -- algo que pode
se tornar um equivalente cultural do bolsa família -- é importante: ele
cria mecanismos que permitem aos trabalhadores (que ganham até cinco
salários mínimos) acessarem bens culturais com um bônus de R$ 50,00
mensais dados, por seu turno, pela empresa onde estão empregados em
troca de isenções fiscais para a mesma.
Não à toa, a Folha já se levantou contra o projeto -- e Marta respondeu, hoje, com muita precisão.
Os argumentos do editorial da Folha não são diferentes daqueles vistos
por certa parte da esquerda que vê, no incentivo ao consumo, o problema
do governo Lula-Dilma. O temor dos setores conservadores é justamente
não saber qual a extensão da liberação do consumo por parte desses
setores (ou pela menos a parcela dele que está empregada) e isso Marta
captou bem -- antes o problema fosse a aquisição de blockbusters e
de livros de auto-ajuda, muitos dos quais promovidos e endossados pela
mesma mídia que ora os critica: o que incomoda mesmo é a possibilidade
disso permitir a massa ir além de sua condição e ter meios para,
minimamente, se integrar ao mundo do qual é alijada. O sistema vive
desse subconsumo.
Mas um ponto tão crucial quanto. É a própria regulamentação do Cultura Viva, que gira em torno da aprovação do projeto de lei 757/2011 de autoria da deputada federal carioca Jandira Feghali (PC do B). Idealizado por ativistas da área e pelo criador do Cultura Viva,
Célio Turino, o projeto aprimoraria o mecanismo de prestação de contas
por parte dos Pontos de Cultura e facilitaria repasses e gastos por
parte dos Pontos de Cultura, dentre tantas outras coisas -- hoje,
engessados pela mesma legislação que dispõe sobre grandes obras e
grandes compras públicas, totalmente carentes de uma legislação
específica. Assim, a produção cultural em nível molecular, por gente
comum do povo, poderia ser expandida em toda a sua diversidade.
Na última segunda-feira (14/01), em audiência pública
com militantes da cultura e ponteiros, Marta se deparou com o quadro do
Cultura Viva. O ponto positivo, desde já, foi a realização de uma
audiência pública depois de anos de interdição do diálogo. Mas ficam
patentes as dificuldades e a situação do MinC depois do vendaval Ana de
Hollanda. O aprimoramento do Cultura Viva é, ou pode ser, o ponto
diferencial na história. Seria a possibilidade de dar conta da "fome
pelo acesso à cultura" ao qual Marta faz referência ao avaliar o quadro
brasileiro. E daria conta por meio da produção de um bom alimento. E a
fome, aliás, tem a ver, sempre, com a relação entre consumo e produção.
Marta quer e precisa fazer acontecer no MinC. E isso é legítimo. Mas ela
só vai conseguir êxito caso se der conta da importância da dimensão da
pasta que tem em mãos -- e monte uma equipe que dê conta disso (e pelo
jeito falta isso). O Cultura Viva é o principal projeto do MinC e seria o
tecido conjuntivo para mais e mais políticas do setor -- como o próprio
Vale-Cultura e o CEU das artes, que ela idealizou --, sua efetivação
definitiva é, portanto, pauta prioritária. Se empreender esforços para a
sua regulamentação, terá obtido uma grande vitória. Sem diálogo e sem a
participação da multidão -- que não é este ou aquele militante ou este
ou aquele movimento -- não há como avançar e não haveria razão de ser
para o Cultura Viva. A abertura ao diálogo, a disposição em entender o
quadro e a vontade de fazer coisas são um caminho, mas há muito ainda a
trilhar. Marta tem, no entanto, a faca e o queijo na mão.
Fonte: O Descurvo
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