janeiro 21, 2013

....Lincoln nos tribunais (A conspiração contra a Constituição)... (Sem Juízo, por Marcelo Semer)

PICICA: "A imprensa também toma o seu papel na propagação do medo, que forma o clima propício para o julgamento viciado, por intermédio de manchetes alarmistas mesmo após o fim da Guerra Civil: “Novas suspeitas de focos rebeldes”; “Suprimentos de água podem estar envenenados”; “Febre amarela espalhada por toda a parte”. Quem pode assegurar que nenhuma dessas coisas de fato vai acontecer, indaga o secretário da Guerra que estimula o terror midiático."


....Lincoln nos tribunais (A conspiração contra a Constituição)....




Filme retrata o abandono de garantias no julgamento do atentado ao presidente




-É para momentos como esse que a nossa Constituição foi escrita.

O advogado enfrenta uma comissão que serve de Júri composta apenas por oficiais do Exército. Quem a preside, mal acabou de carregar uma das alças do caixão de Abraham Lincoln, vítima do homicídio que está em julgamento.

Em vão, ele tenta fazer valer alguns dos preceitos que os "pais fundadores" firmaram uma centena de anos antes, mas percebe que estes foram simplesmente colocados de lado.

Conspiração Americana (The Conspirator, EUA, 2010), dirigida por Robert Redford, é uma aula de direito (ou de não-direito), que vale a pena ser vista, inclusive por quem não domina o vocabulário forense. As questões de justiça que se colocam estão ao alcance de todos e servem como uma profunda advertência aos dias atuais.

O filme retrata basicamente o julgamento de Mary Surratt, dona da pensão que hospedou os conspiradores do atentado ao presidente, em 18 de abril de 1865, e mãe de um dos próprios suspeitos.

Diante do clima de paixão e terror que se forma no país, pelo pleito de dura e imediata punição dos acusados, o advogado, também capitão do exército, reluta em assumir a defesa de Mary e quando finalmente a aceita, percebe a imensa reprovação que surge a seu redor, incluindo os amigos mais próximos.

Não há como não lembrar de Atticus Finch (Gregory Peck, no memorável “O sol é para todos”), ao defender um negro acusado do estupro de uma criança numa pequena cidade do sul americano. Frederick Aiken (representado por James McAvoy) está ali para nos mostrar que até quem conspira para matar o presidente tem direito a um julgamento justo.

Mas está praticamente sozinho.

-Não há presunção de inocência, ônus da prova para a acusação, um júri composto de seus pares, nem direito a recurso –elenca, indignada, a defesa, ao bradar contra a junta militar, além de tudo, totalmente subordinada aos interesses da Casa Branca. Um retrato fiel do que se poderia chamar de processo penal do inimigo -ou de não-processo.

O filme ajuda a entender porque os direitos fundamentais não podem vigorar apenas quando se age conforme o interesse geral –ou para “humanos direitos”, segundo se costuma ouvir. Eles existem, sobretudo, para servir de defesa, justamente quando os indivíduos estão em conflito com essa mesma vontade coletiva.

No cerne da democracia, reside a possibilidade de garantias a quem se imputa até o mais bárbaro crime: a acusação certa, o direito à defesa, a licitude das provas, o juiz imparcial, o acesso ao recurso. O que sobra, além disso, é vingança. Não há estado de direito sob linchamento, ainda quando travestido de algumas tantas formalidades.

A questão jurídica central do filme é a competência da justiça militar para julgar civis. A película narra o entendimento garantista a que chegou a Suprema Corte, mas a situação dos presos eternos em Guantanamo demonstra que os recessos da Carta Magna, documento que os norte-americanos tanto admiram, não são apenas resquícios do passado.

A imprensa também toma o seu papel na propagação do medo, que forma o clima propício para o julgamento viciado, por intermédio de manchetes alarmistas mesmo após o fim da Guerra Civil: “Novas suspeitas de focos rebeldes”; “Suprimentos de água podem estar envenenados”; “Febre amarela espalhada por toda a parte”. Quem pode assegurar que nenhuma dessas coisas de fato vai acontecer, indaga o secretário da Guerra que estimula o terror midiático.

A luta da defesa é ainda mais árdua em razão do drama familiar que permeia o caso. A estratégia de salvar-se acusando o filho é repelida com vigor por uma mãe amorosa, que jamais exigiu ou esperou reciprocidade dele.

Mas a preciosa alegação final em plenário pode ser repetida a todos os que encamparam e sustentam, ao longo do tempo, a necessidade de suprimir garantias para empreender guerras ao terror: “Não permitam a injustiça, sacrificando por vingança nossos documentos sagrados; muitos de nós sacrificaram a vida por eles”.

No filme, o leitor precisa ver o até o final para saber se o apelo deu resultado.


Na vida atual, já sabemos a resposta.

Fonte: Sem Juízo, por Marcelo Semer

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