janeiro 20, 2013

"Febre do rato, febre do ato", veja o filme e leia a crítica


"Febre do rato, febre do ato", por Bruno Cava

PICICA: "Ingênuo? romântico? sem proposta? ora, de que cinema se está falando? que filme seria esse? Quando fala de revolução, não está tão preocupado em como ou quando fazê-la, nos programas ou promessas de futuro. Querem o quê, algum agitprop esquerdista? algum profeta mártir da brasilidade, guiando as massas para a revolução redentora? Se tem uma coisa que A febre do rato não está nem aí é com o futuro do Brasil. Quem domina com o futuro é o governo. E o nosso não quer saber de fantasia." 

Febre do rato, febre do ato
 
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência. ” – Manifesto Caranguejos com Cérebro (1992)


Faz tempo que eu precisava de um filme como esse. Um que aposta tudo, sem reservas, sem medo de ficar mal com ninguém, sem medo do ridículo, de ser tachado de ingênuo. Com a inocência de quem se sente livre para fracassar. Sem medo inclusive de fracassar na repetição, ao engajar-se num estilo que vem desde Amarelo manga. Conjuga o sórdido e o belo, tenta enxergar a força por dentro da escrotidão.

E que se danem os fãs que já fazem de Cláudio Assis uma grife, em mais uma igrejinha festivalóide. A força subversiva de A febre do rato está em pular fora do impressionismo indie auto-indulgente de filmes como Os famosos e os duendes da morte ou Estrada para Ythaca, dois exemplares notáveis; bem como do deslumbramento pequeno-revolucionário autofágico, como de A concepção. O de Cláudio Assis quer agarrar o mundo e não lhe extrair impressões. Quer a desutopia subdesenvolvida e não alguma utopia em esquemas. Se está faturando os festivais, seus funcionários chegaram em atraso e inconvenientes, ante um filme que se quer chão, e que deve (de direito!) ser projetado na rua.

Fala de revolução, ou melhor, de devir revolucionário. Começa e termina no lodaçal, onde coexistem a natureza dos rios e o esgoto da cultura. Nesse filme, escapar pelo terceiromundo quer dizer entrar descalço no mangue, banhar-se nessa lama ultranutritiva, e viver a metrópole como manguetown, achar o mangue em nós mesmos, o nosso, o conceito mangue de vida. É no mangue que vivem os caranguejos com cérebro. Eles não caminham nem pensam pra frente, e não estão nem aí para o futuro do Brasil. O futuro, para eles, não existe. Este “desvairio irresistível de uma cínica noção de progresso” cercando a favela com os prédios da nova Recife, a “nova classe média” retratada como pano de fundo.

A manguetown parece mitológica, os botecos, barracos, cortiços, prainhas, festas juninas, com seus arquétipos: a travesti, a puta, o coveiro, o bêbado, o malandro, a estudante de escola pública, as velhas gozosas, o poeta de rua. Num primeiro momento, a estilização reforça a atemporalidade dos mitos, moldados pelas formas puras. Fotografia em preto e branco, enquadramentos minuciosos, panorâmicas precisas, truques de toda a espécie que até sugerem o velho vício “olha-como-estou-filmando”. Mas não. A dose de formalismo de que parte o filme se despedaça quando os corpos entram em cena, quando as imagens e palavras vão ganhando corpo através dos movimentos e relações entre personagens. Uma manobra de libertação da forma pela carne. Assim foi com os arroubos e cuteladas de Amarelo manga, com a sevícia (e o renascimento) da menina em Baixio das bestas. E de novo, em A febre do rato. Há qualquer coisa de excesso a qualquer tentativa de construtivismo de caméra-stylo. O diretor sabe deixar passar, cortar, segmentar, sabe se preencher, se deixar levar… Não tem mito, é real que não recalca as cargas imprevistas, o intempestivo das cenas. Veja-se a cena clímax. Ela sai truncada de constrangimentos e barreiras, imperfeita, doída mesmo. Ali, imagino, os atores podem estar se perguntando: o que é isto? é um filme? o que estou fazendo aqui? o que se passa?, perguntamos todos.

Ingênuo? romântico? sem proposta? ora, de que cinema se está falando? que filme seria esse? Quando fala de revolução, não está tão preocupado em como ou quando fazê-la, nos programas ou promessas de futuro. Querem o quê, algum agitprop esquerdista? algum profeta mártir da brasilidade, guiando as massas para a revolução redentora? Se tem uma coisa que A febre do rato não está nem aí é com o futuro do Brasil. Quem domina com o futuro é o governo. E o nosso não quer saber de fantasia.

Quando o poeta rueiro se mete nas rodas e, inoportuno, declama o texto, ninguém está muito preocupado com a qualidade, a métrica, o rigor, o convencimento. Muito menos com as ideologias ou bandeiras que desfralda. Não entender sequer é problema. A fala inoportuna tem outro rendimento: mudar o regime de intensidades, aguçar as relações, co-mover e mobilizar e induzir febres. Para onde? Para outro lugar. Aqui não. Para mais ali, onde não estávamos, onde o poder das identidades não nos pegou, ali onde posso me ver aqui, ontem, onde não sou mais. Essa distância entre o antes e o depois é vencida menos pelo tempo decorrido do que pelo que acontece, pelo próprio ínterim, ainda que imperceptível. O filme não deixa de captar essa potência que ativa as pessoas, nele tudo está prestes a.

E o Zizo? Um pouco de cada coisa, hilota bêbado, idiota da aldeia, Dom Quixote, Boca do Inferno, Marquês de Sade. Um Paulo Martins lúmpem, sem tanto idealismo, todo ele sexo, estômago e revolução. A sedução tem as suas epifanias, uma cogitação inaudita que de repente vem e te fulmina, e opera no real. Pode ser uma mijada erótica, a palavra certa, a nudez, o fogo, as barricadas. Zizo alterna o sórdido e o belo, à espreita do algo que mexe as pessoas e muda a cena.

E não tem nada de ingênuo num cara que quer mudar o mundo mas, porra, confessa que talvez não faça a menor diferença. Antipublicitário. Eis aí um pessimismo alegre que, feito multidão, pode levar a anos incríveis como 1871, 1905, 1968 ou 2011 — revoluções cuja febre desprogramou épocas inteiras da história. Com a alegria do militante que sabe não poder confiar totalmente na eficácia das lutas de que participa e nas causas que subscreve, mas se mantém motivado pelo desejo de viver intensamente o tempo, suas sensações, imaginações e contradições. Um pessimismo alegre que nos permite cruzar a vida sem ceder no principal.

Anti-sentimental, de um tesão bárbaro, um cinema liberto de formas submissas ou macetes-de-festival, induz a libertação dos conteúdos e se deixa afetar pelo devir revolucionário, da poesia no ar, dos corpos politicamente animados, do manguetown em que nos reinventamos e reinventamos a pólis. Toma por inimigo antes a polícia em nós mesmos: a servidão voluntária, a voz filistina, o recalcamento do desejo pelo medo, pela repulsa, o remorso, a vergonha, o anseio de pertencer, de ser alguma coisa, pela dívida infinita que nos interpela com os afazeres (sempre temos coisas demais pra fazer para parar e sonhar).

Um filme pra desentupir as artérias e fazer o sangue voltar a circular pela metrópole, como queria Chico Science.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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