PICICA: "Prisões privadas são o fecho de um movimento que já está posto com a
privatização da gestão dos espaços urbanos (pelo conglomerado de
imobiliárias) e rurais (pelo agronegócio), somado a universalização
pública da segurança privada (a universalização das empresas de
segurança e seus aparatos por toda a parte) e a universalização privada
da segurança pública (a polícia republicana convertida mais e mais em
milícia de classe). Não há catástrofe. Não há barulho. É o funcionamento
cotidiano e silencioso do sistema que nos conduz a tal futuro, que mais
e mais se torna presente. A única saída para a violência radical da
nossa sociedade, e de produção, é uma transformação de sua organização
produtiva e social, coisa que se viu, em pequena medida nos anos Lula,
com uma queda de 8%
na violência homicída: envolver a base e a ponta do processo dentro das
mesmas relações materiais é aumentar o problema, não diminuí-lo. Só a
constituição de novas políticas sociais pode efetivamente mudar isso,
sempre tendo em mente que tornar uma sociedade violenta é fácil, mas o
contrário, nem tanto."
As Prisões Privadas, Mercantilização da Vida e o Robocop
>> Está em construção, no estado de Minas Gerais, a primeira
"prisão privada" do Brasil, o que merca a abertura de uma verdadeira
caixa de pandora: viveremos sob os desmandos de uma indústria prisional movida pelo negócio lucrativo de prender gente ? <<
No
Brasil, até hoje, prisões são construídas e geridas pelo poder público.
Por força da Constituição de 1988, largamente garantista, instituições
prisionais deveriam ser o destino de pessoas condenadas depois de terem
acesso ao devido processo legal, sob plena presunção de inocência -- e,
eventualmente, também para presos provisórios ou em flagrante delito.
Nada mais de tortura ou maus-tratos, só a justiça e nada mais. Um doce
devaneio idealista, sem dúvida. A realidade material das relações sociais
brasileiras fez isso cair por terra. A nossa desigualdade intrínseca, a
precarização nas condições laborais (desemprego, queda dos salários)
nos anos 90, a favelização das cidades pela carência de políticas
habitacionais dispararam a violência, o que foi respondido com o
elitismo do judiciário, o punitivismo alimentado pela mídia e o desejo de exceção das classes média e alta. O resultado disso é que, hoje, temos uma das maiores populações carcerárias do mundo.
Grande parte dos nossos presos são provisórios -- isto é, nem sequer
foram condenados, mas o judiciário, que deveria tratar tal questão como exceção, a converte em regra:
todos passam a ser culpados até que se prove o contrário. Tais presos
provisórios, em geral, respondem a processos por crimes patrimoniais de
pouco potencial ofensivo. São negros e/ou pobres. Se o chicote da
tortura parou para os brancos e bem-nascidos com o fim da Ditadura
Militar, para negros e pobres, tudo continua como sempre foi.
O sistema prisional, então, se tornou um problema para o Estado pela sua saturação. Grandes organizações criminosas, como o PCC,
nasceram de dentro dos presídios, enquanto rebeliões e quetais
perturbam a boa sociedade. Se prisões são como infernos reais, o inferno
entrou em colapso, abalando todo o edifício teológico-político no qual se constitui nossa forma de sociedade.
Eis que alguns burocratas passaram a exclamar, há algum tempo, que
privatizar presídios seria uma boa saída. Afinal, o capitalismo é uma
máquina de síntese quase perfeita, logo, entregar prisões às
corporações, com seu interesse privado, resolveria as coisas. Eles
lucrariam de algum com modo com a construção e gestão dos presídios e
tudo passaria a correr bem.
É desse processo que nasce o pioneiro complexo prisional privado de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. A construção da referida prisão se dará por meio do pouco claro regime de Parceria Público-Privada,
cuja legislação aprovada no governo Lula deveria ser uma forma de lidar
melhor com o elemento privado, sobretudo para a construção de grandes
obras de infraestrutura, mas acabou longe disso: ela termina por
consistir em uma nova forma de gestão privada das obras públicas. A
medida específica da construção da prisão mineira é do governo local,
tucano, sempre tão afeito a privatismos vários.
O referido complexo obedecerá o modelo inglês, segundo seus idealizadores. Talvez isso seja só um jeito pomposo para dizer que não terá o modelo americano,
uma vez que as empresas não lucrarão com o trabalho dos presos -- uma
bobagem sem tamanho, haja vista que não poderíamos ter, pela natureza do
nosso sistema jurídico (da legislação penal à administrativa), nada
parecido nem com o primeiro modelo, nem muito menos com o segundo (os
presos só seriam escravos penais do consórcio concessionário no
caso de um desrespeito mais flagrante ainda da Constituição). O que
teremos, afinal, é um originalíssimo modelo brasileiro, uma vez que ele
incorpora modelos estrangeiros à realidade local de um modo, não raro,
contraditório com as próprias necessidades e diretrizes.
Enfim, da mesma forja que produziu a antropofagia, potente e
libertadora, também nasceu também uma forma de síntese colonizadora que
serve ao poder. O nosso sistema de controle de constitucionalidade -- o
juízo de exceção --, por exemplo, é uma mistura do europeu com o
americano sem ser uma coisa ou outra. É, pois, brasileiríssimo. Mas é
brasileiro no sentido de ser um converter-se em mundo do Brasil
-- e como nenhum país faz tanto isso, nada mais brasileiro, afinal. Uma
antropofagia é um devir-mundo do Brasil que é exatamente o contrário e o
antagônico: é devorar o mundo por o amar e não se deixar devorar sadicamente por ele.
O sadismo aqui está no fato de que prender pessoas, de ato estatal, se
tornará um negócio qualquer, o que torna tudo pior. Existirá um cliente
-- o Estado, munido com o erário público --, uma demanda permanente da
parte dele -- encarcerar quem sai da linha no regime --, é só trabalhar.
O problema não está no fato de que a iniciativa privada não possa
melhorar presídios, está no fato de que prender mais gente e ter gente
"penitenciável" se tornará ótimo. Não será mais interessante não ter
gente presa. E quem será preso não serão os outros, seremos todos nós. O lobby
punitivista grassará e terá dinheiro para tanto. Na prática, a gestão
da administração penitenciária, monopólio do Estado, será delegada de
forma branca a um consórcio privado por uma derivação lógica do
processo: ainda que o Estado não vá delegar nada, na prática, o direito
de gerir o presídio permitirá que um consórcio privado faça as vezes do
poder público em certa medida.
Ironias do destino, é uma fábula semelhante à clássica série cinematográfica Robocop
(um dos últimos exemplares da ficção científica futurista crítica dos
anos 80): em um futuro próximo e pós-apocalíptico (não por uma
catástrofe, mas pelo desenrolar dos fatos, sob o neoliberalismo, no qual
até o excesso de raios ultravioleta é ensejo para o comercial de um
protetor solar ridículo) uma corporação gerencia uma decadente Detroit
-- a OCP, Omni Consumer Products -- e usando os restos de
um policial morto em ação, ela faz um ciborgue policial que se torna seu
carro-chefe de sua política de mercantilização da segurança-pública e gentrificação
da cidade. Enfim, com essa medida, o Brasil chega ao futuro e o futuro é
o passado ou a realidade histórica de opressão em sua dimensão
maquínica.
Prisões privadas são o fecho de um movimento que já está posto com a
privatização da gestão dos espaços urbanos (pelo conglomerado de
imobiliárias) e rurais (pelo agronegócio), somado a universalização
pública da segurança privada (a universalização das empresas de
segurança e seus aparatos por toda a parte) e a universalização privada
da segurança pública (a polícia republicana convertida mais e mais em
milícia de classe). Não há catástrofe. Não há barulho. É o funcionamento
cotidiano e silencioso do sistema que nos conduz a tal futuro, que mais
e mais se torna presente. A única saída para a violência radical da
nossa sociedade, e de produção, é uma transformação de sua organização
produtiva e social, coisa que se viu, em pequena medida nos anos Lula,
com uma queda de 8%
na violência homicída: envolver a base e a ponta do processo dentro das
mesmas relações materiais é aumentar o problema, não diminuí-lo. Só a
constituição de novas políticas sociais pode efetivamente mudar isso,
sempre tendo em mente que tornar uma sociedade violenta é fácil, mas o
contrário, nem tanto.
Fonte: O Descurvo
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