janeiro 31, 2013

"“Cuida de ti mesmo”. Entrevista com Michel Foucault" (IHU)

PICICA: "O exercício das práticas de liberdade não exige um grau de libertação?

Sim, é claro. Por isso, é preciso introduzir a noção de dominação. As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas. 

Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade. Caso considerarmos, por exemplo, a sexualidade, é evidente que foi necessário uma série de libertações em relação ao poder do macho, que foi preciso se libertar de uma moral opressiva que diz respeito tanto à heterossexualidadecomo à homossexualidade. Contudo, esta libertação não permite que surja uma sexualidade plena e feliz, em que o sujeito teria alcançado, no final, uma relação completa e satisfatória. A libertação abre um campo para novas relações de poder, que é necessário controlar através das práticas de liberdade."


“Cuida de ti mesmo”. Entrevista com Michel Foucault

Poucos meses antes da morte de Michel Foucault (foto), em 1984, publicou-se pela primeira vez esta entrevista, na qual – em diálogo com o filósofo cubano Raúl Fornet-Beancourt [com Helmut Becker e Alfredo Gómez-Muller] – explicou e esclareceu erros sobre conceitos centrais de sua pesquisa: a noção de “cuidado de si mesmo”, os “jogos de verdade”, as “práticas de liberdade”, a diferença entre poder e dominação, e outros mais. Os fragmentos da entrevista com Foucault, realizada em 20 de janeiro de 1984 (Revista Concordia, 1984), são publicados no jornalPágina/12, 24-01-2013. A tradução é do Cepat. 

Eis a entrevista.

Produziu-se um salto entre sua problematização anterior e a atual, a partir do conceito de “cuidado de si mesmo”?
Eu havia enfocado o problema das relações existentes entre o sujeito e os jogos de verdade a partir de práticas coercitivas, tais como a psiquiatria e o sistema penitenciário, ou sob a forma de jogos teóricos ou científicos, tais como a análise das riquezas, da linguagem ou do ser vivente. Em meus cursos, noCollège de France, tentei captar este problema por meio do que poderia se denominar uma prática de si mesmo, que em meu parecer é um fenômeno importante em nossas sociedades, desde a época greco-romana, apesar de não ter sido estudado. Estas práticas de si mesmo tiveram na civilização grega e romana uma importância e, sobretudo, uma autonomia muito maiores do que tiveram posteriormente, quando se viram assumidas, em parte, por instituições religiosas, pedagógicas, de tipo médico e psiquiátrico.

Trata-se de um trabalho de alguém sobre si mesmo, que pode ser compreendido como uma determinada liberação, como um processo de libertação.

No que se refere a isto, teríamos que ser um pouco mais prudentes. Sempre desconfiei um pouco do tema geral da libertação, na medida em que, caso não o tratemos com algumas precauções e no interior de determinados limites, corre-se o risco de recorrer à ideia de que existe uma natureza ou um fundo humano que tem sido mascarado, alienado ou aprisionado em e por mecanismos de repressão, como consequência de um determinado número de processos históricos, econômicos e sociais. Caso seja aceita esta hipótese, bastaria saltar estes bloqueios repressivos para que o homem se reconciliasse com ele próprio, para que se reencontrasse com sua natureza ou retomasse o contato com sua origem, restaurando uma relação plena e positiva com ele próprio. 

Parece-me que este pensamento não pode ser admitido de qualquer jeito, sem ser previamente submetido ao exame. Com isto não quero dizer que a libertação, ou melhor, determinadas formas de libertação, não existam. Quando um povo colonizado tenta se libertar de seu colonizador, estamos diante de uma prática de libertação em sentido estrito. Porém, sabemos muito bem que, também neste caso concreto, esta prática de libertação não basta para definir as práticas de liberdade que serão a continuidade necessária para que este povo, esta sociedade e estes indivíduos possam definir formas válidas e aceitáveis de existência ou formas mais válidas e aceitáveis naquilo que se refere à sociedade política. Por isso, insisto mais nas práticas de liberdade do que nos processos de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as formas práticas de liberdade. Estamos diante de um problema do qual tenho me ocupado, justamente na relação com a sexualidade. Faz sentido dizer “libertemos nossa sexualidade”? O problema não consiste mais em tentar definir as práticas de liberdade, por meio das quais poderia se definir o que é o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros? Este problema ético, da definição das práticas de liberdade, parece-me muito mais importante do que a afirmação, um tanto batida, de que é necessário libertar a sexualidade ou o desejo.

O exercício das práticas de liberdade não exige um grau de libertação?

Sim, é claro. Por isso, é preciso introduzir a noção de dominação. As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas. 

Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade. Caso considerarmos, por exemplo, a sexualidade, é evidente que foi necessário uma série de libertações em relação ao poder do macho, que foi preciso se libertar de uma moral opressiva que diz respeito tanto à heterossexualidadecomo à homossexualidade. Contudo, esta libertação não permite que surja uma sexualidade plena e feliz, em que o sujeito teria alcançado, no final, uma relação completa e satisfatória. A libertação abre um campo para novas relações de poder, que é necessário controlar através das práticas de liberdade.

Em si mesma, a libertação não poderia ser um modo ou uma forma de prática da liberdade?

Sim, num determinado número de casos é assim. Existem casos em que a libertação e a luta pela libertação são indispensáveis para a prática da liberdade. No que se refere à sexualidade, por exemplo – e falo isto sem o desejo de polemizar, já que não gosto de polêmicas -, acredito que na maior parte dos casos são infecundas. Existe um esquema reichiano, derivado de certa maneira de ler Freud, que supõe que o problema é apenas de libertação. Para falar de uma forma bem esquemática: existiria o desejo, a pulsão, a proibição, a repressão, a interiorização, e o problema se resolveria fazendo saltar todas estas proibições, ou seja, liberando-se. Neste esquema – eu sou consciente de que faço caricaturas de posições mais interessantes e matizadas de numerosos autores – está totalmente ausente o problema ético da prática da liberdade. Como a liberdade pode ser praticada? No que se refere à sexualidade, é evidente que é apenas a partir da liberação do próprio desejo que alguém saberá conduzir-se eticamente nas relações de prazer com os outros.

Você disse que é necessário praticar a liberdade eticamente.

Sim, porque na realidade o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática reflexiva da liberdade? A liberdade é a condição ontológica da ética; mas a ética é a forma reflexiva que adota a liberdade.

Aquilo que se executa no cuidado de si mesmo é a ética?

O cuidado de si mesmo foi, no mundo greco-romano, o modo mediante o qual a liberdade individual, ou até certo ponto a liberdade cívica, foi pensada como ética. Se você consultar toda uma série de textos, que vão desde os primeiros diálogos platônicos até os grandes textos do estoicismo tardio – Epiteto, Marco Aurélio, etc. –, poderá comprovar que este tema do cuidado de si mesmo realmente atravessou toda a reflexão moral. Ao contrário disto, é interessante ver como em nossas sociedades o cuidado de si mesmo se converteu, e é muito difícil saber exatamente desde quando, em algo muito suspeito. Ocupar-se de si mesmo foi, a partir de um determinado momento, quase espontaneamente denunciado como uma forma de egoísmo ou de interesse individual, em contradição com o interesse que é necessário prestar aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Isto ocorreu durante o cristianismo, mas não me atreveria afirmar que se deva pura e simplesmente ao cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois no cristianismo procurar a salvação é também uma maneira de cuidar de si mesmo. Porém a salvação se efetua no cristianismo por meio da renúncia de si mesmo. Produz-se assim um paradoxo do cuidado de si no cristianismo, mas este é outro problema. 

Para voltar à questão que você colocava, acredito que entre os gregos e os romanos, sobretudo entre os gregos, para ser bem conduzido, para praticar a liberdade como era esperado, era necessário se ocupar de si, cuidar de si, isto, por sua vez, para se conhecer e para se formar, para se superar a si mesmo, para controlar os apetites que poderiam nos dominar. A liberdade individual era para os gregos algo muito importante. Não ser escravo (de outra cidade, dos que os rodeiam, dos que os governam, de suas próprias paixões) era um tema fundamental. A preocupação pela liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura clássica. Existiu, então, toda uma ética que girou em torno do cuidado de si, o que proporciona para a ética clássica sua forma tão particular. Não pretendo afirmar com isto que a ética seja o cuidado de si, mas que, na Antiguidade, a ética, enquanto prática reflexiva da liberdade, girou em torno deste imperativo fundamental: “cuida de ti mesmo”.

Imperativo que implica a assimilação do logos, das verdades.
Sem dúvida, não se pode cuidar de si mesmo sem se conhecer. O cuidado de si é o conhecimento de si – num sentido socrático-platônico -, mas é também o conhecimento de certo número de regras de conduta ou de princípios que são, por sua vez, verdades e prescrições. Trata-se de operar de tal modo que estes princípios digam, em cada situação e de certo modo espontaneamente, como se deve se comportar. Encontramos aqui uma metáfora que não provem dos estóicos, mas de Plutarco, que diz: “É necessário que você tenha aprendido os princípios de uma forma tão constante que, quando seus desejos, seus apetites, seus medos se despertarem como cães que ladram, o Logos fale em você como a voz do amo, que com um só grito sabe calar os cães. É esta a ideia de um Logos que de certa maneira poderá funcionar sem que você tenha que fazer nada: você terá se convertido no Logos ou o Logos terá se convertido em você mesmo”.

Poderíamos voltar à questão das relações entre a liberdade e a ética. Quando você afirma que a ética é a parte reflexiva da liberdade, quer dizer que a liberdade pode cobrar a consciência de si mesma como prática ética? É em seu conjunto e sempre uma liberdade, para dizer assim, moralizada ou é necessário um trabalho sobre si mesmo para descobrir esta dimensão ética da liberdade?

Os gregos problematizavam sua liberdade, a liberdade do indivíduo, para convertê-la num problema ético. Porém, a ética no sentido em que os gregos podiam entendê-la, o ethos, era a maneira de ser e de conduzir-se. Era certo modo de ser do sujeito e uma determinada maneira de se comportar que se tornava perceptível aos demais. O ethos de alguém se expressava por meio de sua forma de vestir, de seu aspecto, de sua forma de andar, por meio da calma com a qual enfrentava qualquer acontecimento, etc. Nisto consistia para eles a forma concreta da liberdade. É assim que problematizavam sua liberdade. Aquele que possui um ethos nobre, um ethos que pode ser admirado e citado como exemplo, é alguém que pratica a liberdade de uma determinada maneira. Não acredito que seja necessária uma conversão para que a liberdade seja pensada como ethos, mas que a liberdade é diretamente problematizada como ethos. Contudo, para que esta prática da liberdade adote a forma de um ethos que seja bom, belo, honorável, estimável, memorável, e que possa servir de exemplo, é necessário todo um trabalho sobre si mesmo.

*A versão completa pode ser consultada em: http://www.topologik.net/Michel_Foucault.htm, com o título “La ética del cuidado de uno mismo como práctica de la libertad”.
Fonte: IHU

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