PICICA: "No
fundo, a questão não é, por suposto, moral. Não é um disputa sobre de
quem é a culpa -- em sentido amplo, psicológico ou jurídico --, quem é a
vítima, quem merece ser punido, quem mereceu o quê. É uma problemática
que envolve a produção, o modo de produção contemporâneo, quais sujeitos
e quais objetos são produzidos, tanto para trabalhar nisso quanto para
consumir o produzido. Não é só qual o motivo de nosso sistema empurrar
tanta gente para fazer um curso de Direito, onde e como alocar essa
gente durante o curso e depois dele, mas sobre o, digamos, tecido
conjuntivo simbólico e cultural que é construído para sustentar isso."
O Mundo Jurídico, a Mulher e o Suicídio
Hera, a Deusa das Mulheres, e Prometeus (daqui) |
No
final de Dezembro, uma notícia chocante surgiu no noticiário: uma
estudante de Direito de 21 anos se suicidou de forma dramática, algumas
semanas antes. Ela se jogou do sétimo andar do prédio onde vivia, em um
ato desesperado causado pelo trauma de um possível estupro sofrido por
ela, vejam vocês, em uma festa de confraternização do escritório onde
estagiava, o prestigioso Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, no final de Novembro. Para mim, tudo isso foi particularmente chocante: Viviane (sim, ela
tinha um nome, era um pessoal real) partiu no dia do meu aniversário e
eu a conhecia -- estudava na mesma faculdade que eu, cursava o ano
anterior e se formaria este ano, além de ter sido minha monitoranda em
Direito
Constitucional à noite.
A notícia foi chocante, não apenas pelo fato em si como também pela demora em registra-la: os jornais deram a notícia quase um mês depois,
às vésperas da virada de ano, quando as pessoas estavam pouquíssimo
preocupadas com o noticiário. Antes disso, aliás, o silêncio era
sepulcral, ninguém sabia explicar a situação ao certo e tudo corria à
boca pequena -- boatos volta e meia circulavam e depois sumiam. Esse
silêncio, aliás, não é sinônimo algum de respeito à memória de Viviane,
como constou em nota do referido escritório, mas exatamente o contrário como bem pontuou Ana Rusche em excelente artigo sobre o caso.
Este post,
evidentemente, não se volta aos desdobramentos policiais e judiciais do
caso, embora espere e se empenha para que as investigações corram bem e
se apure, enfim, o ato terrível que levou Vivane ao suicídio. O ponto
que me interessa, no entanto, é que uma menina morreu, da forma mais
bárbara que se pode conceber: ela foi morta em vida por um ato absurdo
que a obrigou, em um desfecho trágico, a precisar pôr fim à própria vida
para extirpar uma dor insuportável; mas nada disso brotou do nada, ou
deixa de estar inserido num contexto histórico pouco alentador.
Esclarecer isso e acabar com práticas sociais que, no limite, levam a tragédias como essa é o que exige o nosso (escritórios, estagiários, as faculdades de Direito, a sociedade etc) empenho agora. A nossa
missão certamente não é preservar a nossa própria imagem -- como
talvez prefira fazer, erradamente, o escritório onde ela estagiava ou
mesmo as pessoas ligadas ao meio jurídico em relação à imagem geral do
próprio meio. Vidas importam, imagens não. O choque aqui é o choque não
da surpresa, mas do previsível trágico acontecendo como em um pesadelo
ou uma profecia.
No entanto, sublinhe-se que o imaginário do mundo jurídico na era do capitalismo cognitivo é um tanto diferente. O cenário hipercompetitivo, machista e explorador das grandes corporações do ramo aponta para um sentido diferente. Os estagiários, que quase sempre arcam com a pior parte do trabalho -- nem sempre tendo em troca os devidos ganhos -- são como as criancinhas que trabalhavam na tecelagens no início da era industrial: corpos suficientemente aptos a serem convertidos em meros objetos daquela atividade (no lugar de dedinhos suficientemente pequenos para fiar, cérebros privilegiados ou corpos suficientemente bonitos para serem desfrutados).
Há um nexo de relações sociais perversas. Muito trabalho, poucos ganhos -- exceto a promessa eterna de efetivação, o sonho com o paraíso profissional --
e uma exploração que se impõe ao quadrado sobre as mulheres -- além do
cérebro que trabalha, há o corpo desfrutável. Nada disso é propriamente
fruto de uma deliberação política, mas decorrência de um fenômeno social
derivado da estrutura de produção -- de soluções jurídicas no caso --
que corre sob vistas grossas de todos. São omissões que ocorrem aqui,
ali e em toda parte. Uma responsabilidade pessoal mítica -- entre partes
inteiramente assimétricas -- volta e meia é invocada para expiar a culpa de todos.
No
fundo, a questão não é, por suposto, moral. Não é um disputa sobre de
quem é a culpa -- em sentido amplo, psicológico ou jurídico --, quem é a
vítima, quem merece ser punido, quem mereceu o quê. É uma problemática
que envolve a produção, o modo de produção contemporâneo, quais sujeitos
e quais objetos são produzidos, tanto para trabalhar nisso quanto para
consumir o produzido. Não é só qual o motivo de nosso sistema empurrar
tanta gente para fazer um curso de Direito, onde e como alocar essa
gente durante o curso e depois dele, mas sobre o, digamos, tecido
conjuntivo simbólico e cultural que é construído para sustentar isso.
Isso
tem a ver com a precarização da condição do advogado e do estudante de
Direito. A atividade advocatícia, que remete ao mundo antigo e sobrevive
desde então, encontrou uma nova configuração no capitalismo cognitivo
como uma espécie de fábrica necessária para dar solução aos atritos --
privados ou públicos -- inerentes ao sistema. Em uma atividade
intelectual, na qual estaríamos livres da exploração do corpo,
aparentemente restrita ao trabalho manual, encontramos a forma mais
sofisticada e definitiva de exploração -- social, difusa, invisível,
anestésica, anônima: ela está impregnada nas práticas cotidianas e é
capaz de penetrar nas nossas cabeças; tanta ansiedade, medo,
ressentimento para conseguirmos nossos lugares.
Se
o caso particular implica na responsabilidade de alguém -- por ação ou
omissão, inclusive jurídica --, o problema mesmo é menos sobre culpa ou
implicações morais e mais sobre o que é esse mundo contemporâneo, qual a
forma que a máquina capitalista contemporânea tomou e como não estamos,
nem podemos, estar alheios a tudo isso. Nós temos tanto fetiche na denúncia da exploração do corpo feminino, e dos corpos em geral, no mundo muçulmano ou mesmo oriental -- como no caso do estupro que consternou a Índia,
recentemente --, mas não conseguimos enxergar nossos próprios problemas
-- ou talvez só consigamos vê-los, ou admiti-los, quando surgem na
forma de arcaísmo, portanto, como raridades.
Numa
época de imagens -- como em uma casa de espelhos -- e de imaginários, é
hora de recuperar uma paixão pelo real: e a realidade é aquela que
remete ao fato de que muito mudou, mas apenas de maneira formal no que
toca à contínua exploração do corpo. Essa realidade não pertece, apenas,
ao interior do Brasil ou às periferias metropolitanas, mas à vida
daqueles que estão inseridos em cursos de ponta em boas universidades.
Esse é o nosso cotidiano, esse precisa ser o motor da nossa luta.
Fonte: O Descurvo
Nenhum comentário:
Postar um comentário