PICICA: "De quem
estivemos falando até aqui? Por que a escolha de detalhes que podem
parecer sórdidos para alguns, insignificâncias degradantes para outros?
Para desenhar tal pessoa, para traçar a biografia deste rapaz,
poderíamos ter escolhido outros traços marcantes seus: sua cabeça
brilhante, tanto por maquinar ideias originais como por ser
completamente raspada, sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam
se ver restos de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus
olhos brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a
capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris; a sua
rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional onde, às
vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; uma presença constante
em passeatas e manifestações, onde assinou inúmeros manifestos e foi
preso algumas vezes; sua solidariedade com todos os discriminados,
perseguidos, exilados; seu total desprendimento das coisas materiais,
tendo deixado, por exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande
valor que foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida
inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica fulgurante que
fascinava as platéias que se apinhavam para ouvir suas aulas no College de France."
Os "maus costumes" de Foucault*
Ele
é um rapaz que parece gostar da solidão, que foge do convívio com as
outras pessoas. A presença dos outros lhe parece ser um incômodo, que
procura resolver usando o seu humor e sua capacidade de ironizar. Zomba
de todo mundo com uma ferocidade que o torna imediatamente antipatizado.
Briga com os colegas, com quem se atraca em público. Adora se exibir. É
logo tido por maluco. Suas atitudes bizarras chamam atenção e levam ao
surgimento daquele equivoco murmúrio que turva o ambiente em volta de
cada um. Um dia seu corpo indócil é encontrado estendido no chão e
ferido a navalhadas. E quando tenta o suicídio, a maioria de seus
colegas vê neste gesto a confirmação de duas suspeitas: a de seu exótico
fascínio pela morte e a de seu precário equilíbrio psicológico. Passa,
então, a viver isolado numa enfermaria, onde se dedica apenas aos
estudos. Ainda se sucederão inumeras tentativas ou encenações de
suicídio, bem como ainda será apanhado quase se transformando num
homicida, ao perseguir um colega, com um punhal nas mãos, pelos
corredores da escola onde estuda. Faz frequentes expedições noturnas
pelos pontos de encontro ou bares homossexuais. Parece, nestas ocasiões,
ser tomado por uma enorme culpa que o esmaga, que o prostra durante
horas, doente, aniquilado pela vergonha.
Talvez,
por isso, na busca de um conhecimento de si, tenha se interessado pela
psicanálise e pela psiquiatria; tenha se dedicado à leitura dos
escritores de “transgressão”, da experiência-limite, do excesso e da
exibição: Bataille, Blanchot, Klossowski; tenha se apaixonado pela
possibilidade do filósofo louco e pelo saber da loucura. O encontro com
os escritos de Nietzsche, sob o sol forte de uma praia africana, parece
ter apenas sedimentado essa paixão e a sua forma de pensamento. A gaia
ciência nietzscheana se torna um acontecimento definitivo na vida deste
rapaz que, apesar de ter se tornado um intelectual maduro e um autor
reconhecido na França e internacionalmente, nunca abandonou o uso do
riso como a sua principal arma, seja nas lutas acadêmicas, seja nas
lutas políticas e pessoais. Mesmo quando estava próximo de morrer,
vitimado pela peste do século, tinha constantes acessos de riso. Quando
lhe falaram, pela primeira vez, da existência de um câncer que só
atingia homossexuais, ele chegou a cair do sofá, contorcendo-se num
acesso de riso, dizendo que era muito bonito para ser verdade. Não se
sabe ao certo se chegou a saber do verdadeiro mal que o acometia, pois
teve o orgulho insensato, a generosidade de não contar a ninguém, para
deixar as amizades viverem livres como o ar, descuidadas e eternas, como
diz Hervé Guilbert. Suspeita-se que tenha contraído aids freqüentando o
que ele chamava “os laboratórios de experimentação sexual de São
Francisco e Nova York”. Ele adorava orgias violentas em saunas. O medo
de ser reconhecido o impedia de freqüentar as saunas parisienses. Mas,
quando partia para o seu seminário anual perto de São Francisco,
esbaldava-se nas inúmeras desta cidade. Nelas os homossexuais desta
cidade realizavam as fantasias mais insensatas. Mesmo após a epidemia de
aids ter se confirmado, ele volta de São Francisco testemunhando que
nunca houvera tanta gente nestes lugares antes, que a ameaça que pairava
no ar criava novas cumplicidades, novas ternuras, novas solidariedades;
as pessoas se falavam, definindo precisamente por que estavam ali.
Quando morreu, o companheiro com quem viveu durante 25 anos encontrou no
armário do apartamento um grande saco cheio de chicotes, de capuzes de
couro, de coleiras, de freios e algemas.
De quem
estivemos falando até aqui? Por que a escolha de detalhes que podem
parecer sórdidos para alguns, insignificâncias degradantes para outros?
Para desenhar tal pessoa, para traçar a biografia deste rapaz,
poderíamos ter escolhido outros traços marcantes seus: sua cabeça
brilhante, tanto por maquinar ideias originais como por ser
completamente raspada, sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam
se ver restos de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus
olhos brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a
capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris; a sua
rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional onde, às
vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; uma presença constante
em passeatas e manifestações, onde assinou inúmeros manifestos e foi
preso algumas vezes; sua solidariedade com todos os discriminados,
perseguidos, exilados; seu total desprendimento das coisas materiais,
tendo deixado, por exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande
valor que foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida
inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica fulgurante que
fascinava as platéias que se apinhavam para ouvir suas aulas no College de France.
Os
detalhes que escolhemos, se fossem apreendidos na grade de um discurso
moral, com certeza classificariam este rapaz como um ser de “maus
costumes”, um ser bizarro, exótico, anormal, marginal. Mas quem é este
individuo, este sujeito construído por esta recolha de detalhes?
Paul-Michel? Muzil? Julian de l’Hôspital? Michel Foucault? Foucault?
[...].
Fonte: Fronteiras Literárias
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