janeiro 27, 2013

"Os "maus costumes" de Foucault" (Fronteiras Literárias)

PICICA: "De quem estivemos falando até aqui? Por que a escolha de detalhes que podem parecer sórdidos para alguns, insignificâncias degradantes para outros? Para desenhar tal pessoa, para traçar a biografia deste rapaz, poderíamos ter escolhido outros traços marcantes seus: sua cabeça brilhante, tanto por maquinar ideias originais como por ser completamente raspada, sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam se ver restos de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus olhos brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris; a sua rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional onde, às vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; uma presença constante em passeatas e manifestações, onde assinou inúmeros manifestos e foi preso algumas vezes; sua solidariedade com todos os discriminados, perseguidos, exilados; seu total desprendimento das coisas materiais, tendo deixado, por exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande valor que foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica fulgurante que fascinava as platéias que se apinhavam para ouvir suas aulas no College de France.

Os "maus costumes" de Foucault*

Ele é um rapaz que parece gostar da solidão, que foge do convívio com as outras pessoas. A presença dos outros lhe parece ser um incômodo, que procura resolver usando o seu humor e sua capacidade de ironizar. Zomba de todo mundo com uma ferocidade que o torna imediatamente antipatizado. Briga com os colegas, com quem se atraca em público. Adora se exibir. É logo tido por maluco. Suas atitudes bizarras chamam atenção e levam ao surgimento daquele equivoco murmúrio que turva o ambiente em volta de cada um. Um dia seu corpo indócil é encontrado estendido no chão e ferido a navalhadas. E quando tenta o suicídio, a maioria de seus colegas vê neste gesto a confirmação de duas suspeitas: a de seu exótico fascínio pela morte e a de seu precário equilíbrio psicológico. Passa, então, a viver isolado numa enfermaria, onde se dedica apenas aos estudos. Ainda se sucederão inumeras tentativas ou encenações de suicídio, bem como ainda será apanhado quase se transformando num homicida, ao perseguir um colega, com um punhal nas mãos, pelos corredores da escola onde estuda. Faz frequentes expedições noturnas pelos pontos de encontro ou bares homossexuais. Parece, nestas ocasiões, ser tomado por uma enorme culpa que o esmaga, que o prostra durante horas, doente, aniquilado pela vergonha.

Talvez, por isso, na busca de um conhecimento de si, tenha se interessado pela psicanálise e pela psiquiatria; tenha se dedicado à leitura dos escritores de “transgressão”, da experiência-limite, do excesso e da exibição: Bataille, Blanchot, Klossowski; tenha se apaixonado pela possibilidade do filósofo louco e pelo saber da loucura. O encontro com os escritos de Nietzsche, sob o sol forte de uma praia africana, parece ter apenas sedimentado essa paixão e a sua forma de pensamento. A gaia ciência nietzscheana se torna um acontecimento definitivo na vida deste rapaz que, apesar de ter se tornado um intelectual maduro e um autor reconhecido na França e internacionalmente, nunca abandonou o uso do riso como a sua principal arma, seja nas lutas acadêmicas, seja nas lutas políticas e pessoais. Mesmo quando estava próximo de morrer, vitimado pela peste do século, tinha constantes acessos de riso. Quando lhe falaram, pela primeira vez, da existência de um câncer que só atingia homossexuais, ele chegou a cair do sofá, contorcendo-se num acesso de riso, dizendo que era muito bonito para ser verdade. Não se sabe ao certo se chegou a saber do verdadeiro mal que o acometia, pois teve o orgulho insensato, a generosidade de não contar a ninguém, para deixar as amizades viverem livres como o ar, descuidadas e eternas, como diz Hervé Guilbert. Suspeita-se que tenha contraído aids freqüentando o que ele chamava “os laboratórios de experimentação sexual de São Francisco e Nova York”. Ele adorava orgias violentas em saunas. O medo de ser reconhecido o impedia de freqüentar as saunas parisienses. Mas, quando partia para o seu seminário anual perto de São Francisco, esbaldava-se nas inúmeras desta cidade. Nelas os homossexuais desta cidade realizavam as fantasias mais insensatas. Mesmo após a epidemia de aids ter se confirmado, ele volta de São Francisco testemunhando que nunca houvera tanta gente nestes lugares antes, que a ameaça que pairava no ar criava novas cumplicidades, novas ternuras, novas solidariedades; as pessoas se falavam, definindo precisamente por que estavam ali. Quando morreu, o companheiro com quem viveu durante 25 anos encontrou no armário do apartamento um grande saco cheio de chicotes, de capuzes de couro, de coleiras, de freios e algemas.

De quem estivemos falando até aqui? Por que a escolha de detalhes que podem parecer sórdidos para alguns, insignificâncias degradantes para outros? Para desenhar tal pessoa, para traçar a biografia deste rapaz, poderíamos ter escolhido outros traços marcantes seus: sua cabeça brilhante, tanto por maquinar ideias originais como por ser completamente raspada, sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam se ver restos de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus olhos brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris; a sua rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional onde, às vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; uma presença constante em passeatas e manifestações, onde assinou inúmeros manifestos e foi preso algumas vezes; sua solidariedade com todos os discriminados, perseguidos, exilados; seu total desprendimento das coisas materiais, tendo deixado, por exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande valor que foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica fulgurante que fascinava as platéias que se apinhavam para ouvir suas aulas no College de France.

Os detalhes que escolhemos, se fossem apreendidos na grade de um discurso moral, com certeza classificariam este rapaz como um ser de “maus costumes”, um ser bizarro, exótico, anormal, marginal. Mas quem é este individuo, este sujeito construído por esta recolha de detalhes? Paul-Michel? Muzil? Julian de l’Hôspital? Michel Foucault? Foucault? [...].


Durval Muniz de Albuquerque Júnior. in. História: a arte de inventar o passado. Ed. Edusc, 2007. p. 113-115.

Fonte: Fronteiras Literárias

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