janeiro 22, 2013

"Corpo e exorcismo no século XXI", por José Geraldo Couto

PICICA: "Um grande filme entra em cartaz em São Paulo sob o risco de ser esmagado pelos blockbusters infanto-juvenis e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Além das montanhas, do romeno Cristian Mungiu, um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012." 


Corpo e exorcismo no século XXI

By José Geraldo Couto – 18/01/2013


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Filme romeno imagina convento católico abalado por nudez e repressão, e convida a refletir sobre poder, sexualidade e fundamentalismos

Por José Gerado Couto*, do blog IMS

Um grande filme entra em cartaz em São Paulo sob o risco de ser esmagado pelos blockbusters infanto-juvenis e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Além das montanhas, do romeno Cristian Mungiu, um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012.

Escrevi com entusiasmo sobre ele na ocasião, e de lá para cá minha admiração não diminuiu. Trata-se, para dizer sucintamente, de um drama de exorcismo ambientado numa remota aldeia da Romênia. Para ser mais exato, num convento católico ortodoxo onde não há luz elétrica nem utensílios modernos. É lá que se reencontram duas jovens amigas e talvez ex-namoradas, Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan), depois que a primeira passou um tempo na Alemanha trabalhando de garçonete.

Esse mundo aparentemente parado no tempo, em que um padre severo domina de modo absoluto as ações e os pensamentos de um rebanho de mulheres cobertas da cabeça aos pés, sofre um abalo profundo com a chegada de Alina. Decidida a arrancar Voichita dali e a levá-la com ela para a Alemanha – o que equivaleria a trazê-la da Idade Média para o século XXI –, a moça não se submete às regras do convento e passa a ser tratada como uma possuída. A própria Voichita se dilacera entre o amor terreno pela amiga e a fé (no padre e em Deus).

A fúria do corpo

O acerto fundamental de Mungiu está em centrar no corpo de Alina, e não no terreno abstrato das ideias, o embate entre desejo e opressão. É a nudez da moça que desestabiliza a fé, é a imprevisibilidade do seu corpo que perturba a ordem. Reprimido, o desejo se transfigura em doença, a razão em loucura. O corpo se contorce, não cabe em si, transborda em saliva, sangue, urina e fluidos diversos.


Também em sua linguagem expositiva o filme é movido por esse embate. Os longos planos fixos e contemplativos da vida cotidiana são sacudidos por movimentos bruscos de câmera na mão quando Eros se desencadeia como uma fera desembestada. É todo um mundo que entra em convulsão.

Em Cannes o filme ganhou os prêmios de roteiro e atriz, dividido entre suas duas protagonistas, mas ficou fora da disputa do Oscar de produção estrangeira, daí o risco de passar despercebido. Convém assistir logo.

Para quem julgar que o tema de Além das montanhas é antigo, ou que se circunscreve a grotões atrasados do planeta, vale lembrar duas coisas. Primeiro, a facilidade com que líderes evangélicos – e fundamentalistas de toda ordem – acusam os que não se enquadram em seus preceitos de estarem possuídos pelo demônio. Segundo, a violência que se abate contra os que colocam a sexualidade na linha de frente da luta contra o poder político, religioso e econômico, como mostram a prisão das componentes do Pussy Riot na Rússia e a inaudita brutalidade contra as moças do grupo Femen que protestavam contra o BBB num shopping de São Paulo. O corpo, ao que tudo indica, ainda é o grande campo de batalha.

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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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