janeiro 28, 2013

"Internação compulsória: preocupação com os usuários do crack ou higienização social?", por Fernanda Melchionna

PICICA: "O drama dos usuários e suas famílias é cotidiano. Entretanto, medidas deste tipo desumanizam o tratamento do usuário químico, violando como regra, e não como exceção em casos extremados de insanidade, a liberdade de escolha do indivíduo e, talvez, com pouca eficácia para a desintoxicação destas pessoas. Ora, dezenas de psiquiatras que se manifestam a respeito ponderam sobre a vontade de largar o vício como uma das principais premissas para o início de um tratamento eficiente. Além disso, um dos maiores problemas são as ínfimas vagas oferecidas pelo poder público para desintoxicação. O sol não pode ser tapado com uma peneira. Toda a celeridade em aprovar esta modalidade de internação involuntária não foi acompanhada da ampliação da rede de Centro de Referência em Álcool e Drogas com equipes multidisciplinares da área da saúde para combater o vício, tampouco com o aumento das políticas de assistência social e de políticas públicas para combater a desigualdade social e medidas preventivas associadas ao desenvolvimento de atividades culturais, recreativas, esportivas para disputar a juventude antes das garras do crack." 

Internação compulsória: preocupação com os usuários do crack ou higienização social?

Fernanda Melchionna

 

Internação compulsória: preocupação com os usuários do crack ou higienização social?

Durante vários dias, o austero prédio da Rua Fröbel, que normalmente se evita, ficou no centro do interesse geral. De onde vinham estas intoxicações em massa? Era uma epidemia, uma intoxicação provocada por alimentos estragados? A polícia apressou-se em acalmar os bons cidadãos: não era nenhuma doença contagiosa, ou seja, as pessoas distintas, a gente de bem não corria nenhum perigo. A hecatombe se restringia ao “círculo de frequentadores do albergue”, escreveu Rosa Luxemburgo no texto “No Albergue” para relatar a situação desumana de indigentes na Alemanha. Passagem oportuna em que Rosa reflete se a situação nos albergues era para responder a necessidade de resgatar e possibilitar reinserção social da população pobre marginalizada ou para retirar dos olhos da “gente de bem” a visão da desigualdade social.

Um dos temas que tem frequentado os jornais assiduamente é a discussão acerca do recente implementação pelo Estado de São Paulo da internação involuntária dos usuários do crack, droga produzida a partir da pasta base da coca, que vicia mais rapidamente e tem efeitos devastadores para o corpo e o convívio social. O crack surgiu nos Estados Unidos na década de 1980 em bairros pobres de Nova Iorque, Los Angeles e Miami. O baixo preço da droga e a possibilidade de fabricação caseira atraíram consumidores que não podiam comprar cocaína refinada. Somaram-se usuários de cocaína injetável, que viram no crack uma opção sem risco de contaminação da Aids, epidemia na época.

No Brasil, a droga chegou no início da década de 1990 (alastrando-se inicialmente em São Paulo). Apesar de seu caráter quase epidêmico, sabemos que o uso de crack é muito mais frequente em classes mais pobres e que nas classes mais ricas as drogas são outras. O quadro dramático dos usuários e suas famílias deve nos comover a pensar medidas que de fato ataquem a raiz do problema, buscando a recuperação, a ressocialização e o combate à distribuição e ao tráfico. Evidentemente isso deve ser encarado como um problema de todas e todos e não apenas dos diretamente afetados. Entretanto, não nos parece que a medida tomada pelo governador do PSDB em São Paulo seja movida por este intuito, por assim dizer, radical e de tomar as coisas pela raiz. O que sim nos parece radical é o ímpeto de higienização social e a sede de lucros da especulação imobiliária frente à área nobre (do ponto de vista do capital) em que se localiza a chamada “cracolândia”, próxima à Estação da Luz. Há exatamente um ano o governo de São Paulo mandou a polícia ocupar a Cracolândia com aparato policial, tratando como criminosas pessoas já marginalizadas pelas condições brutais da vida e do vício. Pouco tempo depois, o retorno dessas pessoas para a área foi inevitável.

O drama dos usuários e suas famílias é cotidiano. Entretanto, medidas deste tipo desumanizam o tratamento do usuário químico, violando como regra, e não como exceção em casos extremados de insanidade, a liberdade de escolha do indivíduo e, talvez, com pouca eficácia para a desintoxicação destas pessoas. Ora, dezenas de psiquiatras que se manifestam a respeito ponderam sobre a vontade de largar o vício como uma das principais premissas para o início de um tratamento eficiente. Além disso, um dos maiores problemas são as ínfimas vagas oferecidas pelo poder público para desintoxicação. O sol não pode ser tapado com uma peneira. Toda a celeridade em aprovar esta modalidade de internação involuntária não foi acompanhada da ampliação da rede de Centro de Referência em Álcool e Drogas com equipes multidisciplinares da área da saúde para combater o vício, tampouco com o aumento das políticas de assistência social e de políticas públicas para combater a desigualdade social e medidas preventivas associadas ao desenvolvimento de atividades culturais, recreativas, esportivas para disputar a juventude antes das garras do crack.

Dada a gravidade do caso se torna simples construir um senso comum em torno de que não existe nada mais a ser feito e que a virulência com a qual a droga ataca o sistema neurológico do usuário o impede de decidir pela desintoxicação. Por outro lado, certamente não veríamos a mesma pressa em internar compulsoriamente, se estivéssemos tratando de usuários provenientes dos Jardins ou qualquer outro bairro rico de São Paulo. Bem sabemos que a neutralidade não é uma característica marcante de nenhuma política pública, elas respondem necessariamente a interesses.

Por que começar por uma medida que coloca como primeira intervenção do poder público a internação compulsória? Por acaso não deveria ser a última? Há muita coisa em jogo e certamente o usuário não é o centro das preocupações. É exatamente aí que mora o problema. Recorrentes são as opiniões de especialistas dizendo que a internação involuntária raramente afasta o usuário da droga. Espero que não estejamos revivendo o passado, quando “leprosários” foram construídos para tirar da circulação e dos olhos da sociedade pessoas com lepra, ou quando os manicômios serviam à reclusão dos diferentes aos olhos da “boa gente”. O que sabemos é que a indiferença e, pior, a coerção nunca resolveram problemas profundos. Pelo contrário, aprofundam problemas sobre os quais ninguém deve permanecer indiferente.

Fonte: Sul21

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