PICICA: "É disso que se trata o filme de Tarantino, de uma forma de imaginar, de reinventar, a história à contrapelo, da revolta como elemento estruturante da narrativa histórica. Se os historiadores, os guardiões da ciência historiográfica, estão mais preocupados com a fidelidade a uma verdade qualquer, essa não é a preocupação do cineasta. Aqui a invenção é uma forma de recusa, de luta e negação do estado de exceção."
Em Django Livre, o diretor americano Quentin Tarantino segue com seu empreendimento de reescrita da história. Da mesma forma que em Bastardos Inglórios, acompanhamos
uma trama que se desenrola numa situação de exceção, na qual um grupo
social é vítima de uma violência absoluta, mas no meio dessa opressão
advém uma força de revolta, suficientemente potente para se sobrepor ao
agressor e vingar as ofensas realizadas. Se no primeiro filme, eram os
judeus e as vítimas do nazismo, em Django Livre sãos
os negros escravizados na sociedade americana da metade do século XIX
que assumem o papel desse grupo oprimido. O protagonista do filme é
Django, um escravo que ganha sua liberdade após o encontro com o caçador
de recompensas alemão King Schultz. Os dois formam uma dupla de
aventureiros que caçam criminosos e foragidos da justiça nas terras
escravistas do sul dos EUA. Essa noção de justiça, como uma
possibilidade de ação direta e violenta contra o fora da lei, é central
no processo de reescrita da história de Tarantino. No fundo, o que se
passa é que diante de uma situação de excepcionalidade, na qual a
própria ordem social é estruturada numa lógica de dominação e violência,
a justiça ela própria se encontra muito próxima do plano da vingança,
do revide e da revolta destrutiva. Django e King se tornam, assim, dois
justiceiros por excelência, assassinando cruelmente os bandidos e
malfeitores que aproveitam a inexistência de uma ordem legal normativa e
regrada. Essa posição de justiceiros da desordem aparece com toda
clareza no momento em que um bando de homens brancos, fantasiados com
máscaras da ku klux klan, tentam matar Django. A armadilha que a dupla
monta, culminando com o assassinato impiedoso do líder do bando de
fanáticos, demonstra muito bem como nesse universo só o revide violento
pode anular a exceção dominante que impera sobre a ordem social. Por
isso, é bastante legítima a opção do filme em usar e abusar da violência
das imagens, uma ampliação especialmente intensa se comparada com Bastardos.
Se naquele filme, salvo engano, quase não vemos a violência contra os
judeus e outras vítimas do nazismo (exceto, evidentemente, a sequência
de abertura, quando o personagem de Christoph Waltz fuzila a família de
judeus que se escondia nas propriedades de um fazendeiro), em Django não
faltam cenas que demonstram a crueldade e a violência contra os
escravos negros. Tais cenas, filmadas segundo a lógica do exagero,
demonstram a banalidade da brutalidade própria de uma situação de
permanente exceção, como aquela que se manifesta numa sociedade
escravista (mas não só). Duas cenas são exemplares: o destroçamento de
um escravo por cães furiosos, como punição pela tentativa de fuga, e a
luta até a morte de dois escravos, para divertir seus senhores. A
violência dessas imagens não se resume a uma espécie de desejo sádico de
impressionar a sensibilidade dos espectadores, mas trata-se muito mais
de uma tentativa de criar contornos visuais para este estado de exceção
que trata o filme. Diante dessa situação, existe a possibilidade lógica
de construir um discurso do ressentimento, no qual a dominação aparece
como um motivo central de rememoração e lamento. Porém, não é essa a
opção de Tarantino. Em seu filme, mais do que reiterar um quadro de
violência e dominação, existe um forte desejo de reflexão sobre a
possibilidade mesma da não-resignação. É nesse ponto que faz sentido a
proposta de reescrita da história. Ora, parece que existe um
questionamento central, que já estava presente no filme anterior, ainda
que numa enunciação menos nítida. Este questionamento pode ser resumido
numa simples pergunta: por que os subjugados não se revoltavam? Ora, um
historiador pode elaborar as mais diversas respostas e reflexões sobre
isso, tentando entender como o edifício escravista se manteve em pé por
tantos séculos. A preocupação do filme não é tanto a de encontrar uma
explicação desse tipo, mas imaginar o que seria se, diante dessa
dominação, a resposta fosse diferente: sim, podemos nos revoltar, diante
da injustiça, podemos responder com a revolta mais violenta. Se essa
resposta imaginativa implicava numa reconstrução da macrohistória em Bastardos Inglórios, com a morte de Hitler e a destruição do nazismo diante da tela do cinema, em Django Livre
a proposta está situada num plano mais microscópico. As ações de Django
não provocam exatamente a ruína da escravidão americana, mas apenas a
destruição da ordem senhorial construída em torno da fazenda Candyland
(na qual vivia presa a esposa de Django) e de seu senhor, Calvin Candie.
Este encarna toda a tirania e injustiça da escravidão, sendo
responsável pelas maiores torturas e violências contra seus escravos.
Por isso, a posição de tirano ocupada por Calvin faz da sua destruição
um símbolo metonímico da recusa completa da própria ordem escravista.
Não é por acaso que a sequência final acabe com a explosão completa da
Casa Grande. É disso que se trata o filme de Tarantino, de uma forma de
imaginar, de reinventar, a história à contrapelo, da revolta como
elemento estruturante da narrativa histórica. Se os historiadores, os
guardiões da ciência historiográfica, estão mais preocupados com a
fidelidade a uma verdade qualquer, essa não é a preocupação do cineasta.
Aqui a invenção é uma forma de recusa, de luta e negação do estado de
exceção. Esse projeto já estava anunciado em Bastardos Inglórios,
mas a continuação amplia seu interesse, na medida em que estende o
alcance dessa luta: não é essa ou aquela minoria, mas a luta contra o
estado de exceção aparece como um confronto universal da história. E a
revolta, nessa perspectiva, se torna o próprio motor que movimenta e
transforma essa mesma história.
Fonte: Ensaios Ababelados
Django Livre de Quentin Tarantino