PICICA: "O subterrâneo do filme está mesmo na ronda dos espectros. Esse inconsciente ameaçador, entreouvido e entrevisto, nunca encarado de frente, constitui o verdadeiro sujeito de O som ao redor. Diz muito sobre a nossa realidade." EM TEMPO: Leia, também, "O Som ao Meu Redor" e "O Som ao Redor ou O Naturalismo à Brasileira".
O som ao redor (Kléber M. Filho, 2012)
Existem filmes engajados em que você sai do cinema com uma compreensão suficiente da mensagem desejada pelo diretor. Dos panfletos aos filmes-denúncias, militam abertamente por uma causa, e não guardam a menor reserva em tomar partido. Noutro tipo de filme, igualmente ativista, tem-se a impressão que o filme não resolve nada, não esclarece, mas é bem sucedido em apresentar um impasse. Os últimos se limitam, modestos, a oferecer as coordenadas de certa situação de perplexidade, e então abrir o assunto à reflexão e ação dos espectadores. O som ao redor não se encaixa em nenhuma das categorias citadas. É um filme que você pode sair do cinema achando que algo de muito importante está faltando ou, paradoxalmente, que está sobrando. Que algo de essencial na “mensagem” se perdeu, ou que excede o enunciado. Entre a falta e o surplus, se pode perscrutar quem fala nesse filme.
A paisagem do filme consiste no que às vezes é chamado de “classe média média”. Uma composição social que tem suas peculiaridades e trejeitos regionais; embora nos comportamentos, grosso modo, seja a mesma em qualquer cidade brasileira. A câmera vasculha o coditiano dessa população fragmentada entre grades, paredes, muros altos, marquises e corredores estreitos. Entre a ansiedade e o terror, agorafóbicas e paranoicas, as pessoas se cercam de concreto armado e se isolam umas das outras para viver o seu paradigma habitacional, na mais reacionária democracia de condomínio. A câmera percorre a paisagem como se esta fosse uma velha conhecida, em incoercível nostalgia, porém parece jamais identificar-se a ela.
O real é forçado, distorcido, implacavelmente desassossegado de maneira a dar passagem a outras ordens da percepção. Faz isso com sobriedade, com a firmeza de quem conhece cinema a ponto de não incorrer nas ingenuidades correntes. Portanto, sem deslumbre com rotinas encantadas, com o “instante eterno” de indies metidos a besta e apaixonados pela câmera, quer dizer, por si mesmos. O som ao redor é muito mais do que isso. O tom é de investigação, com cautela, quase tateante. Nenhuma paixão pelo real: distanciamento. E nenhuma condenscendência do diretor ante suas criaturas. O protagonista João termina o filme pintado como (ainda mais) um pequeno-burguês descolado. Escusa a própria posição de classe com a mera consciência da injustiça, refugiado numa conveniente passividade. Não sucede vacilação, dilema, qualquer esboço de ação. João é a patética “bela alma” do filme, no melhor humanismo de madame brasileira, esse que se compraz de sentar à mesa com a empregada ou conversar com o porteiro. O problema está no comprazer-se.
É de fato facil emplacar no filme o esquematismo de classe. Apesar de o diretor não firmar uma instância crítica (tipo Sérgio Bianchi em Os inquilinos), ou mesmo pedagógica (idem, Cronicamente inviável), nem se exaltar politicamente como agitador e panfletário (tipo Cláudio Assis), e tampouco se render a estrito naturalismo de fundo sociológico (como A casa de Alice, de Chico Teixeira); vai ficando claro como O som ao redor insinua uma oposição social. Uma oposição que aos poucos, ou a qualquer momento, de súbito, pode se converter em antagonismo real. A violência está na esquina, e é legítimo esperar por ela. Do meio do filme em diante, a ansiedade e o terror da classe média começam a encarnar num grupo de personagens, revelando a dialética entre segurança e insegurança. O esquema de classe (ou raça) vai coalhando na narrativa, um enunciado tão repetidamente sugerido que acaba se impondo ao enredo. A sensação que se tem é que a câmera está investigando essa divisão, mas nunca tem certeza do que retrata, se é isso mesmo, ela avança, hesita, recua, e no final acaba atropelada pelos acontecimentos.
A força do filme, o que nele falta e o que sobra, está na capacidade de tecer uma subnarrativa. Só ao final se tem a noção do trabalho cuidadoso de conferir consistência sonora a essa latência. Sobretudo sonora, apoiada sobre truques de gênero (o terror). Marx também frequentava assiduamente Shelley, de quem aproveitou vampiros, mortos-vivos e monstros de toda sorte para a sua obra crítica. O subterrâneo do filme está mesmo na ronda dos espectros. Esse inconsciente ameaçador, entreouvido e entrevisto, nunca encarado de frente, constitui o verdadeiro sujeito de O som ao redor. Diz muito sobre a nossa realidade.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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