janeiro 16, 2013

"Racismo à brasileira", por Sidney Aguilar Filho

PICICA: "Na Constituição brasileira de 1934, em seu artigo 138, está escrito que “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”. No Brasil das décadas de 1930 e 1940, a “educação eugênica” foi aplicada às crianças, em especial aos filhos da classe trabalhadora mais empobrecida, sobretudo, nos termos da época, entre “órfãos e abandonados, pretos ou pardos, débeis ou atrasados”." EM TEMPO: No Amazonas, merece registro dois entusiastas da eugenia: no início do século XX o médico Araújo Lima, que foi prefeito de Manaus e deputado federal pelo Amazonas; e em meados dos anos 1970, o médico psiquiatra Benedito Joaquim Barbosa. O primeiro, nascido na Ilha de Marajó em 1884, viveu e estudou em Manaus, concluiu seus estudos no Rio de Janeiro e Paris, numa Europa que cedia terreno ao racismo científico, tanto assim que numa passagem na obra "Amazônia: O homem e a terra", que veio à luz em 1933, no auge do debate intelectual sobre o "melhoramento das raças", o referido autor mencionou seu encanto com a eugenia que assombrava os círculos científicos. Resta saber se o conteúdo da sua obra foi marcado pela educação eugênica. O segundo, nascido na Paraíba, radicou-se em Manaus depois de uma breve estadia na França, trazendo na bagagem a psiquiatria fenomenológica, que lhe serviu de sustentação para um projeto de política de saúde mental para o Estado do Amazonas, durante o governo José Lindoso, baseado nos princípios da eugenia psiquiátrica, amplamente desenvolvido na obra "Saúde Mental e Desenvolvimento (?) - Uma Abordagem Humanística", e que foi recusada pelo governador. Para entender esse contexto, sugiro a leitura do texto "A Guerra da Identidade: Raça e Mestiçagem no Pensamento Latino-Americano".

Racismo à brasileira

A eugenia e seu par inseparável, o autoritarismo, marcaram profundamente a educação no Brasil na primeira metade do século XX

 

Sidney Aguilar Filho

Na Constituição brasileira de 1934, em seu artigo 138, está escrito que “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”. No Brasil das décadas de 1930 e 1940, a “educação eugênica” foi aplicada às crianças, em especial aos filhos da classe trabalhadora mais empobrecida, sobretudo, nos termos da época, entre “órfãos e abandonados, pretos ou pardos, débeis ou atrasados”.
Nada menos que três dos ministros da Educação, durante a Era Vargas, identificaram-se com esse ideal de base racista. Francisco Campos (1891-1968), Belisário Penna (1868-1939) e Gustavo Capanema (1900-1985) defenderam abertamente concepções eugênicas, assim como outros intelectuais da Educação, na época, também defenderam argumentos semelhantes. Lourenço Filho (1897-1970), por exemplo, concluiu com suas pesquisas que haveria uma relação entre velocidade de aprendizagem e “cor” – defendeu que as crianças pretas possuiriam um déficit natural em relação às brancas na capacidade de aprendizagem, e isso deveria ser levado em conta na composição das “salas seletivas” ou no “uso de mecanismos corretivos” no processo de aprendizagem. Ou ainda, Afrânio Peixoto, que, em sua obra Noções de História da Educação (1936), defendeu a segregação de crianças e adolescentes “degenerados” como forma de garantir a “saúde da Nação”.
Afrânio Peixoto defendeu a segregação de crianças e adolescentes “degenerados” como forma de garantir a “saúde da Nação”
O termo “eugenia” (“boa geração”) foi cunhado, em 1883, pelo antropólogo inglês Francis Galton. Eugenia seria a ciência que lida com todas as influências que supostamente melhoram as qualidades inatas de uma pressuposta raça em favor da evolução da humanidade. Na afirmação de Galton, os cérebros de uma “raça-pátria-nação” encontravam-se sobretudo em suas elites, e aí se deveria concentrar a atenção e os esforços para o aprimoramento. Seria estatisticamente “mais proveitoso” investir nas elites e promover o “melhor estoque do que favorecer o pior”. Galton procurou demonstrar que as características humanas (inclusive as intelectuais, culturais e morais) decorriam da hereditariedade mais que da própria história.
Ao longo das primeiras décadas do século XX, o pensamento eugenista tornou-se cada vez mais geneticista. O evolucionismo social procurou “mais na origem genética e menos nas alterações genéticas herdadas” as explicações e justificativas para “eugenia e disgenia”. A “pureza” da origem, ou a falta dela, ganhou status explicativo da “superioridade e da inferioridade” humana e da nação.
No Brasil, as relações socioeconômicas sustentadas na lógica eugenista foram profundamente marcadas pela história escravocrata. Durante o século XIX, a ideologia da eugenia expandiu-se no mais tardio reduto escravocrata do mundo. Para quem defendia o direito do proprietário sobre uma propriedade humana, essa lógica chegou com a intenção de legitimar a escravidão ou, diante do seu fim, fortalecer a ideia de que a liberdade não seria acompanhada de igualdade. Os trabalhadores imigrantes europeus, que, no século XIX, haviam sido considerados até a “salvação da raça brasileira” pelos racistas de então, tornaram-se, na visão dos racistas da República, que engatinhava no início do século XX, cada vez mais estrangeiros sujeitos à xenofobia e a diversas formas de preconceitos, difundidos no cotidiano de maneira crescente. O imigrante pobre passou a ser associado à barbárie e sujeito às perseguições, em graus diferentes de opressão. Os japoneses e os médio-orientais, sobretudo muçulmanos ou judeus, foram unidos, por essa ideologia, aos trabalhadores nacionais identificados com a escravidão (pretos e pardos, na linguagem documental da época), tidos como mais degenerados e perigosos.
As defesas do bem comum e da coisa pública foram os argumentos sistematicamente utilizados por legisladores da Assembleia Constituinte de 1933-1934, em especial na bancada liderada por Miguel Couto (1865-1934), como justificativa para a desigualdade de direitos com base na eugenia. Assim foram traçadas as políticas públicas na área da Educação. Formar o cidadão como um trabalhador perfeito a ser engrenado na máquina de produção, e educar o indivíduo para a vida da ação tornaram-se ações centrais nas leis, discursos e práticas educativas, principalmente as escolares.
Os eugenistas tentaram “naturalizar” o processo histórico das sociedades nas quais se inseriam. No Brasil, criaram um plano teórico gelatinoso, modernizante-conservador, o qual subsidiou e influenciou a educação. Ideias que chegaram às leis e às políticas públicas. A sociedade brasileira era vista por esses grupos como um organismo vivo, único e coletivo, preso pela genética a determinações políticas, culturais e sociais. O determinismo biológico primava sobre as características históricas para fundamentar estratégias de controle e manipulação social.
O destaque dessa corrente de pensamento no país foi Oliveira Viana (1883-1951), reconhecido por defender a existência de uma única “raça”, a “ariana”, e explicar todo o “restante” da humanidade pela “degenerescência”. A concepção racista da “origem poligênica da humanidade” fora rejeitada por religiosos em virtude de contrapor-se ao criacionismo monoteísta. Oliveira Viana foi membro da Subcomissão do Itamaraty e, dentro dela, da comissão responsável pelos assuntos “Religião e Família, Cultura e Ensino Nacional, Saúde Pública e Colonização”, na qual nasceu o artigo 138 da Constituição de 1934. Ele enxergava a história dos povos a partir de determinantes biológicos. Para ele, referir-se ao corpo da nação como um ser orgânico não era uma metáfora política roubada da biologia nem um corporativismo simplista, e sim uma realidade inexorável em sua visão determinista “histórico-biológica”. Viana, que clamava por uma “engenharia racial”, era chamado por Plínio Salgado (1895-1975) – o líder da Ação Integralista Brasileira – de “o maior dos sociólogos”.
A segregação e a desigualdade de direitos entre cidadãos foram legalizadas, teorizadas e praticadas no país
Ao justificar a intromissão e a intervenção do Estado tanto na vida pública quanto na vida privada dos indivíduos, o pensamento eugenista revelava seu caráter autoritário. Intervenção no amor, no trabalho, na política, no conjunto das relações sociais, sem permitir qualquer liberdade de participação nas decisões, pois as justificativas estavam na pretensa verdade absoluta da ciência. As instituições autoritárias e as práticas de segregação se reforçaram mutuamente na área de Educação, pela prática da exclusão, da desigualdade de direitos de cidadania de crianças e adolescentes, pela condição econômica ou por sua “origem”.
Um olhar sobre o Brasil de Vargas (1930-1945) revela a segregação racial como política estatal, implodindo a teoria da “democracia racial” brasileira. Antes, ao contrário, confirmam o autoritarismo extremado do Estado brasileiro e de seus detentores contra setores específicos da sociedade. Os estudos mais recentes sobre a temática mostram, superando os desconfortos, que a segregação e a desigualdade de direitos entre cidadãos foram legalizadas, teorizadas e praticadas no país.
Ultrapassadas as teorias racistas, depois do holocausto produzido pelo nazismo, a lógica que divide a humanidade em raças hierarquizadas entre si felizmente conheceu seu declínio. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a temática da eugenia e de suas práticas no Brasil foi transformada em tabu, e o mito da “nação sem preconceitos” se consolidou. A igualdade entre todos, mais do que realmente construída historicamente, foi presumida e auxiliada pelo esquecimento de um passado constrangedor. Na última década, no entanto, ressurgiram os debates a respeito do determinismo genético nos processos educativos e a crescente medicalização da educação escolar. Por isso, precisamos estar atentos a fim de evitarmos os “cochilos” da História.
Sidney Aguilar Filho é autor da tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil” (Unicamp, 2012).

Saiba mais
BAIA HORTA, Joaquim Silvério. O hino, o sermão e a ordem do dia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
BITTENCOURT, Circe. Pátria, civilização e trabalho. São Paulo: Loyola, 1990.
D’ÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.

Fonte: Revista de História

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