PICICA: "O filme é atravessado por relatos de historiadores, jornalistas, escritores, moradores da região e descendentes de participantes da guerra, músicos e folcloristas, os relatos às vezes contrastam uns com os outros, emprestando ao longa um recorte histórico multifacetado e relevante para a discussão que se pretende lançar."
O Contestado: Restos Mortais
A República era coisa do diabo. A culpa era do comunismo. O Contestado: Restos Mortais,
mais recente filme de Sylvio Back, discute os conflitos ocorridos,
grosso modo, entre 1912 e 1916, rasgando territórios paranaenses e
catarinenses, a partir de um amplo corte histórico de uma guerra que
envolveu não só uma disputa pelas terras, pelos espaços, mas justamente
pela riqueza que provinha da região, abundante em madeira e erva-mate.
Com disputas judiciais entre Santa Catarina e Paraná que precedem os
conflitos armados (a guerra do Contestado causou mais mortes que a de
Canudos) e com procedentes que envolvem a empresa ferroviária Brazil Railway Company
e o governo, que havia declarado que as terras que estavam sendo
disputadas pelos estados eram de ninguém, devolutas (habitadas, mas não
posses), iniciando o processo de desapropriação dos moradores da região –
porque desapropriar sempre fez parte do progressismo republicano. Se a
guerra era santa e o messias não retorna, os deuses precisam ser
inventados pelos homens. A legitimidade da luta, mesmo que imbuída de
todo um suco religioso fanático, mas talvez justamente por ele, mostrou
poder de resistência e organização social frente ao coronelismo e ao
exército republicano. Filme político.
Os caboclos expulsos de suas terras
decidiram seguir os ensinamentos do monge José Maria e passaram a
organizar a resistência. Messianicamente, os monges defendiam a
simplicidade e se colocavam politicamente contra as injustiças sociais:
ajudavam doentes, peregrinavam, e a eles eram atribuídos poderes de cura
milagrosos. Enquanto coronéis conquistavam cada vez mais terras,
caboclos e fazendeiros fortaleciam-se em um grande grupo armado. A vida
em comunidade, com as relações de propriedade abolidas e com um sistema
de trocas implantado (o comércio fora extirpado da comunidade), os
jagunços resistiam. Após viajar para Irani, então território paranaense,
para defenderem-se da invasão, tropas do Regimento de Segurança do
Paraná chegaram ao local para devolver os sertanejos a Santa Catarina.
No conflito, entre milhares de outros de ambos os lados, José Maria
morre. A partir daí os combates ganham diferentes contornos, sendo que
passaram a ter, na região de Caraguatá, o protagonismo de Maria Rosa,
jovem que dizia receber espíritos, como José Maria, e que teria sido
assim, seguindo conselhos do falecido monge, que conseguiu arregimentar
um pequeno exército.
O filme é atravessado por relatos de
historiadores, jornalistas, escritores, moradores da região e
descendentes de participantes da guerra, músicos e folcloristas, os
relatos às vezes contrastam uns com os outros, emprestando ao longa um
recorte histórico multifacetado e relevante para a discussão que se
pretende lançar. Se o conflito foi marcado por um caldo religioso
messiânico, com todas as atribuições possíveis ao fanatismo dogmático
pela força divina, Sylvio Back insere, entre as entrevistas, transes
mediúnicos que realizariam essa conexão com o passado. Como ilustração,
há um resgate da memória pelos espíritos com a mediação do corpo, o
transe (mesmo que claramente encenado), as conversas com os coronéis,
generais, caboclos e jagunços. Eis que a força de O Contestado
supera os limites de sua tensão: os relatos costuram as reinvindicações
dos caboclos e a pressão dos governos estaduais e da República
recém-formada. Uma expectativa se cria, uma angústia fermenta na tela.
Planos fechados mostram apenas os rostos
dos entrevistados, a luz é apenas expressão da busca pelos relatos lá
onde eles residem imaterialmente: na penumbra da memória. A
narratividade estética suporta o peso dos relatos. Quando os rostos
escapam o quadro, a câmera volta a encontrá-los, não há outra forma de
mostrá-los senão com seus poros em exposição. Se as sequências de
transes não confirmam o espírito de guerrilha dos relatos e do desejo de
imantar-se pela História (mesmo que estejam justificadamente inseridas
no filme), tampouco contribuem para a dramaticidade dos eventos. A
própria história e a necessidade de redescobri-la já seriam suficientes
para amplificar a voz do filme. Nessa sombra, O Contestado tanto resiste esteticamente às facilidades do documentário brasileiro quanto se confunde com elas, o que lhe serve bem.
(O Contestado: Restos Mortais, Brasil, 2010) De Sylvio Back.
Fonte: Tudo é Crítica
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