abril 10, 2008

Moradia assistida (II)

Foto: Rogelio Casado - Grupo de Agricultura do HCER, Manaus-AM, anos 1980

Ao centro, de camiseta preta, Zuila; ao seu lado, de bata branca, Nazaré. Os demais compunham o Grupo de Agricultura, da dir. para esq.: Elói, Zacarias, Pascoal, visitante, Teresa, Antônio e Rosemary.
O ex-deputado federal Paulo Delgado, do PT-MG - autor da Lei 10.216 (Lei de Saúde Mental) - costumava provocar a psiquiatria conservadora afirmando que um copo de água com açucar e uma boa acolhida - apenas isso - era capaz de fazer mais pelos usuários dos serviços públicos de saúde mental do que o confinamento fizera em toda a história do modelo de tratamento baseado no hospital psiquiátrico e seus ambulatórios medicalizadores. Evidentemente era uma bela provocação. Dela tomei conhecimento do I Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, realizado em São Paulo, no ano de 2004. A psiquiatria democrática já nos ensinara que é possível usar criteriosamente o conhecimento psicofarmacológico e por fim ao abuso químico de que se vale a psiquiatria conservadora.

O exemplo vem dos anos 1980. Acabara de retornar de São Paulo, onde fizera minha residência médica em psiquiatria social. Ali conheci Franco Basaglia, o criador da psiquiatria democrática na Itália. Sob inspiração da sua obra criei em Manaus, no então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, o Grupo de Agricultura, pondo fim aos longos anos de ócio químico a que a psiquiatria conservadora submetera os internos do velho hospício. A história da paixão, vida e morte desse grupo está por ser contada.

Por ora, vale lembrar que aquele projeto de reabilitação psicossocial incidiu de maneira positiva no aumento da auto-estima e na construção dos direitos de cidadania, historicamente negados aos "portadores de sofrimento psíquico" em todas as latitudes do planeta, como o direito de ir e vir e a remuneração pela atividade produtiva. É isso mesmo! O produto de uma tonelada de verdura ali plantada, a criação de suínos, os roçados de macaxeira, milho e mandioca, além da produção de farinha, retornava em forma de pagamento, o que pode ser observado, na fotografia acima, mesmo para os não iniciados no olhar antropológico: as roupas usadas pelos integrantes do grupo em nada lembram as "fardas" dos manicômios; elas foram adquiridas com recursos próprios, advindos do suor dos seus rostos, do seu próprio trabalho.

Numa época em que não havia terapeutas ocupacionais, a façanha, que nos aproxima da bela provocação de Paulo Delgado, teve nas figuras de Zuila e Nazaré a sustenção que precisavamos para acolher e criar novos vínculos com os internos. Explico-me: ambas trabalhavam como ajudantes de cozinha no velho hospício. Em suas biografias havia um dado que nos interessava: trabalharam na produção de verduras e hortaliças na luta pela sobrevivência num período de suas existências. Era tudo o que precisavamos. Aliado à redução drástica do uso de psicofármacos, esse conjunto foi decisivo na reinvenção da cidadania negada aos homens e mulheres submetidos à violência institucional dos últimos duzentos e cinquenta anos.

No momento em que a Terapeuta Ocupacional Márcia Maria Gomes de Souza lidera o processo de retorno ao convívio social dos últimos internos de longa permanência do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro - cerca de 50 pessoas -, seu principal desafio transcende os muros da instituição psiquiátrica e diz respeito ao rumo que a civilização quer dar ao que um dia os códigos jurídicos tipificaram como loucos de todos os gêneros, afinal como dizem os saberes emancipadores só possível conhecer a sociedade em que se vive obervando a maneira como seus loucos são tratados. Estamos de olho.

A Márcia mora em meu coração desde pequenina.



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Moradia assistida (II)

Comparada à psiquiatria do litoral e da região central do Brasil, o quadro hospitalar é menos agressivo no Amazonas. Lá, ainda é expressivo o número de sujeitos submetidos à psiquiatria conservadora, pródiga em nomear como “crônicos” os que são submetidos à violência de seus métodos; esses, sim, cronificadores. Cá, eles não passam de 50 “internos”.

Em Paracambi-RJ, apesar do esforço dos reformistas de boa linhagem, o hospital-albergue psiquiátrico registra cerca de 900 pessoas internadas. Em Franco da Rocha-SP, o hospital-depósito psiquiátrico beirou os 5 mil internos. Em Goiânia-GO, as psico-cirurgias entram em cena periodicamente. Em Barbacena-MG os horrores do hospital-campo de concentração psiquiátrico chocaram o país, não faz muito tempo.

Hoje, Barbacena é exemplo de convívio entre sociedade e loucura com seu Festival da Loucura, realizado entre os dias 3 a 6 de abril, bancado pelo jornalista-prefeito da cidade, amparado em reformistas de boa cepa. Goiânia resiste bravamente à banda conservadora da psiquiatria e seus aliados. Franco da Rocha distribuiu seus internos com os municípios de onde eram originários, exigindo as responsabilidades constitucionais que lhes competem. Paracambi criou inúmeras moradias assistidas, várias delas com a função de casa de passagem, preparatório do retorno para casa dos egressos do hospital psiquiátrico aos seus municípios.

No Amazonas, feitas as primeiras lições da construção da Reforma Psiquiátrica nos anos 1980, ainda residem no Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro pouco mais de 40 pessoas. Falta pouco para que eles tenham suas cidadanias restauradas com a instituição das moradias assistidas, processo em que silenciosamente vem se sobressaindo o trabalho da Terapeuta Ocupacional Márcia Maria Gomes de Souza.

O desafio de Márcia e sua equipe é ajudar a cidade a criar solidariamente novos valores simbólicos, em que velhos lugares renovem inteiramente sua função social. Impossível fazê-lo sem a construção de um novo pacto social.

Manaus, Abril de 2008.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com

Nota: Artigo publicado no Caderno Raio-X, do jornal Amazonas em Tempo, onde escrevo às quartas-feiras.
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