maio 25, 2009

Donde estés, Benedetti...

Os versos acima – do poema ‘Consternados, Rabiosos’ - escrito para Che Guevara ainda sob o impacto de sua morte, em outubro de 1967, se volta agora, como um bumerangue, para homenagear seu autor, Mário Benedetti, falecido domingo passado, em Montevidéu, aos 88 anos.

Poeta, escritor, jornalista, militante político, o uruguaio Benedetti nos deixa 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, além de roteiros cinematográficos e um sem-número de artigos em jornais e revistas. Sua morte se chora até em Mangueira.

Em Mangueira, quando morre um poeta, todos choram”, assegura outro poeta, Nelson Cavaquinho. Fico me perguntando: por que será que esse verso mexe tanto com a gente, cala tão fundo dentro de nós? Será que é porque ele evoca a nossa relação com quem é capaz de despertar em nós algo cuja existência sequer desconfiávamos? Alguém que adivinha e dá forma ao que sentimos?

Posto que a poesia, como o pão-nosso-de-cada-dia, é tão indispensável à vida, padeiros e poetas fazem uma falta danada quando se ausentam. A morte de quem manuseia o trigo e a palavra não decreta o fim da poesia e do pão, é verdade, mas nos deixa saudosos do sabor de ambos. Choramos, então, a nossa fome, o poema ausente.

E aí o mundo, de repente, se converte numa imensa Estação Primeira. Mangueira é Paso de los Toros, onde ele nasceu, ou as ramblas de Montevidéu, onde viveu; é uma universidade qualquer no Rio de Janeiro ou um bistrô de Paris, às margens do Sena; uma biboca na beira de um lago chileno; uma comunidade campesina dos Andes; uma esquina de Buenos Aires ou um barranco de Barreirinha, no Amazonas; uma querência dos lhanos venezuelanos ou um bohío da Colômbia; o malecón de Havana ou uma alameda limenha. Tudo é Mangueira, todos os lugares em que o poeta foi pranteado.

O cangaceiro doce

Foi em Lima que conheci Mário Benedetti no exílio, em 1974, em circunstâncias insólitas, no meio de uma enorme confusão armada dentro de um hospital. O nosso poeta Thiago de Mello, que vivia exilado na Alemanha e estava de passagem pelo Peru, teve um piripaque no coração. Foi internado às pressas. Corri pra clínica. Lá, me deparei com um senhor de bigode de vassoura, um doce cangaceiro, cuja cara lembrava Miguel Arraes, e cujos gestos eram de Gianfrancesco Guarnieri. Ali, na maca, ofegante, o poeta amazonense nos apresentou.

Enquanto se realizavam os procedimentos de praxe para a internação, ficamos os três à espera do cardiologista. Apareceu, então, um médico e, ali mesmo, na portaria, colocou a aparelhagem de oxigênio no Thiago que passou a respirar mais aliviado. Instantes depois, uma enfermeira advertiu: - “Doutor, foi um equívoco. Seu paciente não é esse, é o outro na sala ao lado. Esse daí é do doutor Fulano”. Acreditem, juro que é verdade: o esculápio – tinha cara de esculápio - tentou retirar os aparelhos. Benedetti e eu ameaçamos sentar a porrada nele. Seguramos as pontas, até o doutor Fulano chegar.

O quarto do Thiago dava direito a acompanhante. Nós dois nos revezávamos, velando o amigo. A troca de turno era sempre um momento de conversa prazerosa. Numa madrugada, depois do show em uma peña, a cantora Chabuca Granda invadiu a Clínica Italiana com seus músicos. Quem tinha peito para barrá-la? O porteiro só faltou beijar os pés dela, deixando-a entrar.

Aí, em hora inapropriada, dentro do hospital, Chabuca fez serenata para Thiago. Derramou ‘lisuras’ e, com sua voz rouca e sensual, deu uma ‘canja’ para os doentes, cantando Fina Estampa’, naquela quase ‘mañanita alegre, con luz de luna y de sol’. No final, deu seu diagnóstico, olhando o amigo poeta, cujo coração estava sob cuidados médicos: “Eso te pasa por tener un corazón muy grande”.

Eu tinha consciência do privilégio de conviver, naqueles intervalos, com aquele exilado uruguaio asmático, tímido, bom de papo, com senso de humor, que já era internacionalmente conhecido e que professava a crença “na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas fora de moda”, como ele mesmo escreveu. O período do meu exílio no Peru coincidiu com o dele: de meados de 1973 até o final de 1976.
Agora, há dias, na última segunda feira, bem cedo, eu havia acabado de ler no jornal a noticia de sua morte, quando o telefone tocou. Era um interurbano de Thiago de Mello, recém-chegado da Europa. – Você viu o que aconteceu com Benedetti? – perguntei. Thiago ficou engasgado. Não sabia ainda da morte do seu querido amigo, para quem enviara um e-mail dias antes.

Depois disso, dezenas de artigos sobre o poeta uruguaio transitaram pela internet. Uns lembravam que ele combateu a ditadura, amargou a prisão e o exílio. Outros focaram sua obra “a serviço da raiva que lhe produziam as ditaduras”, como escreveu Juan Cruz: “Morreu o poeta do compromisso, do amor e da alegria, o homem que iluminou com seus versos (de amor, de política, de terra, de ar) a vida de qualquer um. Era um homem insubornável, o mais comprometido de seu tempo. Sua morte deixa num silêncio melancólico sua época, seu exemplo e a raiz de seus versos”.

Seus poemas, que “oscilaram sempre entre um lirismo tocante e um compromisso social permanentemente reafirmado, como destacou José Carlos Ruy, muitas vezes conseguiram unir habilmente estas duas dimensões: a lírica e a social. Um exemplo é o poema ‘Consternados, Rabiosos’, dedicado a Che Guevara”.

Onde quer que estejas, se é que estás, se estás chegando, Benedetti, será uma pena que não exista Deus, uma pena, de qualquer forma haverá outros, claro que haverá outros, dignos de te receberem, poeta, porque como o comandante "estás muerto / estás vivo / estás cayendo / estás nube / estás lluvia / estás estrella”.

P.S. - Benedetti talvez gostasse de ler um texto sobre sua morte compartilhando o espaço com a defesa da liberdade de expressão. Por isso, na versão impressa desse artigo – Adeus, Benedetti – publicada no Diário do Amazonas, reproduzimos na integra a moção de solidariedade do Conselho Universitário da Universidade Federal do Amazonas ao professor Gilson Monteiro que há duas semanas sofreu agressões físicas e ameaças de morte por parte de Amir e Mansur Aziz, irmãos do vice-governador Omar Aziz (vice, vice!) do PMN (vixe, vixe!). A nota repudia a agressão dos Irmãos Metralha: “Não existem registros na história das Universidades de tamanho ato de barbárie, de covardia, de brutalidade e ameaças efetivadas a um professor na presença de seus alunos e em seu pleno exercício de cátedra”. Se os agressores não forem punidos, fica clara a cumplicidade do vice-governador Omar Aziz com seus irmãos.

Fonte: TAQUIPRATI
Posted by Picasa

3 comentários:

Anônimo disse...

Luiz Arraes:Bom dia Rogério,
sou um dos dez filhos de Miguel Arraes(o oitavo).De fato há alguma semelhança entre Benedetti e meu pai.A sua descrição física do grande escritor e grande figura humana que nos deixou.Não o conheci como você,mas o vi de perto em uma conferencia dele.A sua morte me pegou com seu livro "Primavera num espelho partido" na metade.Sua descrição física dele é muito boa:a mistura de meu pai e Guarnieri.
Sou médico como você.Cheguei há poucos dias de Trieste.Visitei o antigo manicômio destivado por Franco Basglia.
Tanta coincidencia me fez escrever esta pequena mensagem.Thiago de Mello,grande Thiago,é um velho amigo da família.
Abraço
Lula

PICICA disse...

Meu caro Luiz, em verdade o texto que você leu é de autoria do meu amigo José Ribamar Bessa Freire, amazonense e cidadão do mundo, atualmente professor da UFF. A descrição do Benedetti , misto do seu velho pai e do grande Guarnieri foi extreamamente feliz. Outra feliz (in)coincidência (fosse eu um junguiano diria que trata-se de um encontro significativo) é você se deparar com meu blog. Para mim, que conheci Franco Basaglia pessoamente em São Paulo, em 1978, saber que você esteve em Trieste é motivo de grande satisfação. É pra celebrar com uma boa garrafa de vinho e conversa de muitas horas. Disponibilizo meu e-mail - rogeliocasado@uol.com.br - para novos dedos de prosa. Bem vindo no seu retorno ao Brasil!

Anônimo disse...

Mande um abraço para José Ribamar.
Escrevo para você.
Abraço
Lula