Nota do blog: Por duas ocasiões - 14/09 e 28/09 - o texto abaixo foi remetido para o Caderno Saúde & Bem Estar, do jornal Amazonas em Tempo, onde escrevo com regularidade, sem que tenha merecido publicação. Aliás, regularidade é justamente o que não vem ocorrendo com as publicações, por razões que ignoro. Espero não estar sendo alvo de sutil censura. Caso meu artigo tivesse sido publicado na edição de 27.09, teria feito contraponto à matéria publicada no jornal A Crítica, na qual, sobre entrevista que concedi, há uma flagrante distorção de informação que penaliza unilateralmente o Secretário de Estado de Saúde por uma responsabilidade que não lhe compete: criar a rede de serviços substitutivos ao hospício de Manaus. Alertei ao jovem jornalista que me entrevistou do meu temor em servir como objeto de manchete sensacionalista, já que a entrevista iniciou com a questão de pessoas com transtorno mental que circulam na cidade. O leitor foi respeitado com uma manchete realista: "Amazonas caminha a passos lentos na luta antimanicomial". Entretanto, como as linhas editoriais dos nossos jornais obedecem critérios não jornalísticos (o que a cidade habituou-se; cada um faz a leitura que mais lhe convém), a seção Sobe & Desce resolveu por o médico Aguinaldo Costa, Secretario de Estado de Saúde, na descendente, o que motivou resposta na edição do dia 29.09: "ERRAMOS - O titular da SUSAM Aguinaldo Costa, contestou desce da seção Sobe & Desce desta página, publicada no Domingo, sobre a saúde mental do Estado. Explicou que o setor foi municipalizado e que agora é responsabilidade da Prefeitura". Ué! Mas isso eu disse na entrevista com todas as letras, e lamentavelmente esse trecho não foi publicado. No entanto, essa passagem da minha fala é elucidativa: "O abandono das pessoas com transtorno mental em Manaus, na avaliação de Casado, é retrato da demora de mais de uma década na municipalização da saúde pública (do Estado, vai por conta do entrevistador)". Uma leitura atenta desse trecho não teria permitido o deslize da seção. Aproveito para esclarecer o que não foi publicado na reportagem. Desde 1993 as principais metrópoles do país passaram a municipalizar as ações de saúde. A assinatura da municipalização em Manaus só aconteceu em 2003, sendo signatários do acordo o prefeito Alfredo Nascimento, o governador Eduardo Braga e o ministro da saúde Humberto Costa. Entre 2005 e 2008, Serafim Côrrea, prefeito da cidade, não implantou um Centro de Atenção Psicossocial (serviço que substitui o manicômio e seus ambulatórios medicalizadores) sequer. Três psiquiatras contratados por concurso público na sua administração pediram demissão por absoluta ausência de qualquer política para o setor. Um vexame! Aguarde informações sobre as ações atuais da municipalidade no campo da saúde mental. Há esperanças; mas há preocupações no horizonte. E pra não dizer que deixei barato, anote aí: ao Estado cabem outras responsabilidades, tema sobre o qual voltarei oportunamente.
3 x 4 da Reforma Psiquiátrica
Nos anos 1960, imperava no Brasil a psiquiatria conservadora. Seu legado resiste, ainda hoje, em dar lugar aos serviços que substituem o hospital psiquiátrico. Contra esse modelo obsoleto uma voz rompeu o silêncio: o psiquiatra Luiz Cerqueira. Tive o prazer de conhecê-lo no IV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Fortaleza-CE, em 1976.
Durante os anos 1970, ensaiamos algumas respostas. Mesmo desarticuladas elas se disseminaram pelo país. Humberto Mendonça, estudante de medicina em Manaus, encarnou esse espírito. Nada sobrou do que documentou com a jornalista Ádria Mendonça sobre os horrores do isolamento a que humanos eram submetidos no Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. O filme foi confiscado pelo mesmo diretor afastado por corrupção no hospício público em 1980.
A vinda de Franco Basaglia ao Brasil em 1978, criador da psiquiatria democrática na Itália, fortaleceu a luta dos trabalhadores de saúde mental contra a indústria da loucura e um parque de 100 mil leitos psiquiátricos. Dez anos depois o movimento radicaliza. A humanização do hospital psiquiátrico fôra assimilada por administrações descomprometidas com o futuro dos “doentes mentais”. Daí a nova bandeira de luta: “Por uma sociedade sem manicômios”. Estávamos em 1987.
Em 1989, a administração de Telma de Souza, do PT, tendo David Capistrano Filho como Secretário Municipal de Saúde de Santos, inicia o desmonte da Clínica Anchieta, inovando ao implantar cinco Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). Através do conceito de território, um conjunto de equipamentos sociais, culturais e de saúde põe-se a serviço da cidadania e da inclusão social dos “pacientes psiquiátricos”. Conheço remanescentes daquele hospício, que saíram do horror do confinamento para o tratamento em liberdade.
Nos anos 1990 surge um importante protagonista no campo da saúde mental: o agora denominado usuário de saúde mental, conforme decisão num encontro de familiares e usuários do movimento antimanicomial, até então contando com participação majoritária dos técnicos em saúde mental.
Em Manaus, o fotógrafo Nivaldo de Lima, sobrevivente dos horrores dos manicômios de Recife, submetido a 13 eletrochoques, é um desses milhares de brasileiros que não trocam o tratamento em liberdade pela medicalização dos ambulatórios de hospitais psiquiátricos humanizados. O problema é que Manaus só tem um CAPS (criado pelo governo estadual), na zona norte da cidade. Até agora nenhuma administração municipal assumiu a responsabilidade de implantar a rede de Centros de Atenção Psicossocial. Lástima!
Manaus, Setembro de 2009.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
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