PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
outubro 14, 2009
Stela do Patrocínio
Clip do espetaculo ENTREVISTA COM STELA DO PATROCINIO, Núcleo do Cientista, São Paulo, Brasil.
o tempo é o gás, o ar, o espaço vazio
STELA DO PATROCÍNIO, nascida em 1941, impressionou profundamente a artista plástica Neli Gutmacher e suas estagiárias, quando esta foi convidada, na década de 80, a montar um ateliê na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira. Interna desde 1962, Stela se destacava dos outros pacientes por sua fala peculiar, com alto teor poético. Algumas de suas falas foram gravadas em fitas cassetes e, quase quinze anos depois, foram transcritas, organizadas em forma de poesia e reunidas em livro pela escritora Viviane Mosé. "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome" atingiu tal repercussão que, em 2002, tornou-se finalista do Prêmio Jabuti e, em 2005, levou a fala de Stela a ser transformada em ópera pelo compositor Lincoln Antonio. Apesar de amplamente divulgados e acolhidos com entusiasmo por poetas e intelectuais, seus poemas permanecem relativamente desconhecidos do público em geral, talvez pela falta de uma divulgação pública das gravações, ou de uma nova edição com a transcrição integral de sua fala.
Totalmente abandonada pela família, Stela permaneceu por quase 30 anos interna da colônia psiquiátrica, sem nunca ter saído de lá; veio a morrer em 1997, vítima de uma infecção generalizada.
Os poemas aqui presentes seguem a formatação e a seleção proposta por Viviane Mosé e foram publicados sob autorização da Azougue Editorial.
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
*
Olha quantos estão comigo
Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Para poder estar comigo
*
Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro
Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria
*
Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria formar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade para essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
nem vontade para essas coisas
*
Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles
*
Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha
*
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro
*
Não deu tempo
Eu estava tomando claridade e luz
Quando a luz apagou
A claridade apagou
Tudo ficou nas trevas
Na madrugada mundial
Sem luz
Fonte: http://www.confrariadovento.com/revista/numero11/phantascopia.htm
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário