junho 26, 2010

Humanismo, Ciência e Democracia

Humanismo, Ciência e Democracia
Os princípios que nortearam a transição para o novo modelo de assistência aos portadores de sofrimento psíquico.
Paulo Delgado
Tema: Mesa Redonda: “Saúde mental e cidadania”
REFORMA PSIQUIÁTRICA E A LUTA ANTIMANICOMIAL
 - SAÚDE MENTAL E CIDADANIA -
Município de Divinópolis/MG
10 de junho de 2010 – 10:00 hs.

Permitam-me iniciar lembrando dúvida clássica sobre o sentido da vida: o mundo é digno de riso ou de lágrima? Padre Antonio Vieira, interpretando lenda grega que envolvia dois filósofos, decidia: ¨Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias; logo, maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.¨
Uma lei fundadora. Não! Fundadora da lei é o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e seus fundamentos: humanismo, ciência, técnica, comunidade, afeto, história. Era preciso continuar o trabalho de todos aqueles, profissionais e leigos, que alertas e sensíveis, buscavam reorientar a medicina moderna na direção que aponta para a unidade corpo-espírito e querer, assim, encontrar a origem, a fabricação das doenças orgânicas, físicas e mentais.

I
Agradeço ao Presidente da FUNEDI/UEMG, Professor Gilson Soares; à Coordenadora Geral do INESP, Professora Ivana Prado de Vasconcelos; à Coordenadora do Curso de Psicologia, Professora Michele Mileib; aos palestrantes Sr. Paulo dos Prazeres, Diretor de Atenção Primária de Divinópolis; ao Professor Marcelo Dalla Vecchia, da UFSJ/Campus Dona Lindu; ao Professor Cleyton Sidney de Andrade, da FUNEDI/UEMG; à Coordenadora do debate, Elizabeth A. de Andrade Souza Barbosa e às alunas do curso de Psicologia da FUNEDI/UEMG, que organizaram este evento: Adriana Silva Rodrigues, Elizabeth A. de Andrade Souza Barbosa, Fernanda Maria Ferreira, Izildina de Fátima Guimarães Ferreira, Maria Lúcia Oliveira, Marcela Azevedo Ferreira; e, por fim, aos participantes do evento, o convite e a oportunidade para vir aqui falar a respeito do que penso sobre a reorientação do modelo assistencial brasileiro em saúde mental. Vejo os Congressos da Área de Saúde sempre como uma saudável advertência, um sintoma: o retorno da verdade na falha de um saber. Alertados por Freud em seu texto “Análise Terminável e Interminável”: “na verdade, toda a pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego psicótico num lugar ou noutro, e em maior ou menor extensão, e o grau de afastamento de determinada extremidade da série e da sua proximidade da outra, nos fornecerá uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de alteração do ego”. Há quem diga que são nossas neuroses que nos salvam das psicoses!(Wilfred R.Bion)

Gostaria de dizer a todos que considero-me um usuário da lei, não seu proprietário. E situo o debate sobre a reforma psiquiátrica brasileira, seus desafios, avanços e recuos, pelo lado mais adequado que é o da humanidade e seus direitos, para as pessoas portadoras de sofrimento mental. Não sou técnico, psiquiatra, psicólogo, psicanalista, terapeuta ocupacional, enfermeiro, assistente social, auxiliar de enfermagem, gestor. Sou candidato a paciente e, enlouquecido, quero ser tratado no serviço aberto.

É essa a posição que me fez aceitar apresentar o projeto de lei, há mais de 20 anos, quando procurado, em Minas, pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, uma organização civil da área de saúde e direitos humanos – já naquela época e há mais de 30 anos, luta pela reorientação e a redefinição do modelo psiquiátrico no Brasil. Ali fui informado que a impiedade do tratamento de pacientes com transtorno mental estava baseada numa legislação dos anos 30 – 1934 – e que refletia, quando foi criada, o nível e o grau de compreensão que a medicina mundial e a maioria dos profissionais da área de saúde entendiam ser o modelo de atenção possível a ser oferecido – e como se revelou – imposto aos doentes mentais no mundo todo.

Não havia ainda nas Nações Unidas e sua Organização Mundial de Saúde uma compreensão e um consenso sobre o novo tratamento, nem mesmo sobre direitos de doentes mentais, pontos essenciais que iniciaram o debate mundial pela reforma psiquiátrica. Muito embora, aqui no Brasil, justiça seja feita, desde os anos 50, já havia uma experiência no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, a Casa das Palmeiras, liderada por uma psicanalista brasileira, doutora Nise da Silveira, a quem presto homenagem nessa conferência.

Doutora Nise foi uma pioneira na América Latina. Primeira profissional a entender que o sofrimento humano, a doença mental podia ser observada por um olhar que ultrapassava o diagnóstico médico e a mera intervenção daquela clínica. Não a considerava única, suficiente e capaz de compreender toda a complexidade da loucura e da doença mental. Foi ela quem mais nos ajudou a perceber no estudo da esquizofrenia “onde a gata encontra seus filhotes” (Lacan, sobre a psicanálise).

Além dela, também, é impossível desconhecer o Manual de Psiquiatria Social de Luiz Cerqueira e seu combate à “industria da loucura”.

O humanista e perseguido Ulisses Pernambucano dizendo aos seus alunos para não deixarem de lado a cultura geral e… lerem Proust e Moliére.

O Centro Médico Social de Murialdo, Porto Alegre, com a medicina comunitária do Dr. Ellis Busnello.

A primeira lei brasileira de assistência aos loucos, 1902, do médico negro e baiano Juliano Moreira, que entrou na Universidade antes de acabar a escravidão e não admitia camisa de força nos serviços que dirigia.

A visita de Franco Basaglia a Barbacena e o filme “Em nome da razão” de Helvécio Ratton.

A desconstrução do Anchieta em Santos pela ação do sanitarista David Capistrano.

A Portaria 189, de l991, de Domingos Sávio, o Pai do CAPS, Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde que passou a financiar procedimentos e dispositivos de incentivo a outras formas de assistência.

II
A extinção progressiva dos manicômios e a sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamentando a internação compulsória e dando outras providências na área dos recursos públicos é a primeira lei de desospitalização e desmanicomialização em discussão no parlamento latino-americano. Esta lei tramitou 12 anos no Congresso Nacional – dois anos na Câmara dos Deputados inicialmente, oito anos no Senado Federal e dois anos posteriormente na Câmara dos Deputados. Sua sanção, no dia 6 de abril de 2001, véspera do dia mundial de saúde mental, é uma homenagem, especialmente aos doentes e a seus familiares, e é uma conquista do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Este, durante 12 anos no Congresso Nacional, conseguiu aumentar progressivamente o apoio à lei, dentro e fora do parlamento, vencer resistência de inúmeros ministros da saúde e relatores das duas casas do Congresso. Digo isso para historiar um pouco a fim de mostrar que derrubar a lei de ferro da doença mental, a lei de 34, não foi e não é tarefa muito fácil ou exclusivamente de legisladores.

III
Ela é uma lei social, talvez de todas as leis médicas brasileiras, a mais ampla e que envolve o maior número de pessoas na sociedade – usuários, técnicos, críticos, adeptos, entusiastas e pessimistas – a lei da saúde mental, segundo dados da OMS, poderia abranger, no Brasil, 13 milhões de usuários de serviços psiquiátricos ou de remédios da área da psiquiatria. Essa lei poderia beneficiar diretamente em torno de 600 mil brasileiros que, de uma forma ou de outra, nos últimos anos, passaram por asilos e, numa prisão perpétua, vivem ou viveram praticamente contrários ao que determina a Constituição. Uma lei da medicina se vista como a mais social e comunitária das ciências, quando se orienta pela atenção preventiva, curativa, reabilitadora, continuada, personalizada e participativa.

Se compareço a qualquer serviço de medicina e não tenho perspectiva de cura, quebro uma perna, vou ao pronto socorro e dali não saio mais, não sou eu que estou doente, quem adoece é o hospital, é ele o doente e a doença. A idéia de que existem pessoas sem perspectiva de cura é uma impotência da medicina, do sistema sanitário, que assim propõe um fracasso de sua humanidade, incapaz de ter pelo menos compaixão. Um saber médico impiedoso aceita, no mínimo, ser regido pela lei de proteção aos animais, mais complacente com a vida. Ou mira-se em Saramago que afirma que os instintos servem melhor aos animais do que a razão serve ao homem.

Temos condições claras de substituir o modelo assistencial de saúde mental, mas não podemos perder a perspectiva histórica dessa lei. Quando no século XIX, na Inglaterra Vitoriana, criaram-se as leis dos pobres, os doentes mentais foram os primeiros a serem estigmatizados e nas naus dos insensatos jogados ao mar. Ali do lado, um pouco antes, na França da Revolução, a lei dos pobres, também a pretexto de protegê-los, discriminava os doentes mentais, mas buscou distingui-los com o tratamento moral. Foi um francês, Philip Pinel, que imaginou a possibilidade de construir o acolhimento e um lugar de atenção e através do Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou mania consolava e classificava os delirantes, e os manteve internados e isolados, por mais de cem anos. Nasceu o primeiro hospital especializado, protegendo os pacientes da impiedade e da legislação discriminatória da época, que não os via como nobres, burgueses, cidadãos produtivos e nem mesmo sans-cullotes, encarcerando a folia. Nascido sob o regime do terror (1793), o alienismo aboliu as correntes dos loucos, libertando-os nos hospícios. Alienado, estranho de si mesmo, mas capaz de ver-se tratado pelo seu resto de razão.

A primeira grande instituição psiquiátrica foi o manicômio, instituída com o objetivo de proteger pessoas do preconceito e da estigmatização. Essa idéia de um hospital fechado, murado, que encerra, estigmatiza, isola, não tem, 200 anos depois, razão de ser. Não tinha na época, sob o olhar de hoje, tanto quanto a escravidão, sendo inaceitável seu prolongamento pelos tempos afora. A reforma psiquiátrica é de certa forma a abolição da escravidão do doente mental, seu fim como mercadoria de lucro dos hospitais fechados, da exploração do sofrimento humano com objetivos mercadológicos. Mas é preciso, ao ter em conta a história dessa lei, considerar que procurar os asilos, no início do século, no nosso país, era uma forma também de procurar o direito de pensão. Ir ao manicômio, abandonar seu paciente numa internação prolongada, era lhe dar direito de pensão e de proteção. Assim compreendiam muitas das famílias que internavam, mas também muitos, por má fé, utilizavam o dispositivo psiquiátrico por razões não psiquiátricas. Quantas pessoas foram internadas para resolver conflitos familiares, problemas de herança, gravidez indesejada, droga, álcool e outras formas de opressão que não podem ser resolvidas, sozinhas, pela psiquiatria?

Hoje, no início do século XXI, em qualquer cidade importante do país, tem-se que levar em conta a história da reforma psiquiátrica no mundo, mas tem-se que principalmente levar em conta que nem todos os problemas humanos são psiquiatrizáveis ou psicologizáveis. Muito do que se diagnostica como depressão não passa de profunda tristeza e solidão dos mais sensíveis. Problemas humanos devem ser tratados como problemas a serem resolvidos, e não contornados pela psiquiatria, em substituição a políticas públicas de atenção e inclusão social. Temos que, ao lutar pela humanização do tratamento do doente mental, evitar a psiquiatrização dos conflitos sociais, que podem nos levar todos a tratamento psiquiátrico sem necessidade. A idéia de que pela psiquiatria, psicologia ou pela intervenção médica e técnica pode-se resolver problemas sociais é uma idéia equivocada de uma parte da reforma psiquiátrica. A reforma psiquiátrica não produz lei médico-social para competir com a prerrogativa das organizações e instituições de caráter social. Ela contém um forte sentido cultural, mas é essencialmente uma reforma que tem que ter sustentação técnica, médica, sustentação na história e na evolução da medicina compreendida socialmente.

Do contrário, a reforma psiquiátrica provocará mais incompreensão. Todos sabem aqui que a loucura se tornou doença mental há menos de 200 anos. Até ali a loucura não era doença mental, era insensatez cultural, religiosa, social, pessoal. A estratégia de transformar toda forma de desequilíbrio em doença mental, toda forma de ruptura do equilíbrio psicológico em doença é uma estratégia com forte componente farmacológico, quimioterápico, hospitalocêntrico. Nós não podemos com o tratamento apaziguar a sociedade, recalcando a verdadeira personalidade de homens e mulheres diferentes. A psiquiatria não foi feita para confrontar e punir a personalidade e suas manifestações múltiplas, transformando-as em sintomas da loucura. Não podemos enlouquecer todos com a psiquiatrização de seus conflitos e das dificuldades. Da mesma maneira, fazer o discurso da excelência do avanço médico e do avanço técnico não é integrar-se ao saber médico, desintegrando-se a si mesmo diante do saber médico. A camisa-de-força literal ou química deve ser abolida.

IV
O sofrimento mental precisa de dois valores fundamentais para se ancorar, estes são a base da reforma psiquiátrica: o primeiro deles é a escuta do sofrimento. Quem não gostar de doente mental não tem condições de trabalhar na área. A doença mental é, talvez, das áreas médicas a que mais exige solidariedade humana, desprendimento, destemor, capacidade de absorção, de produção e de sentimentos de cooperação e de integração social. Os doentes mentais querem aquilo que a oftalmologia me deu, que são estes óculos para compensar um pouco a miopia. Querem aquilo que a cadeira de rodas possibilitou ao deficiente físico. Querem programas de integração social: abaixem as calçadas que eu subo com a minha cadeira; dê-me uma muleta que ela é a extensão da minha perna; o mal do qual me queixo também é digno de ser tratado com respeito.

Essa é a idéia essencial da reforma psiquiátrica: construir um centro de gravidade baseado no paciente e suas possibilidades terapêuticas. Assim a reforma exigirá a transferência de recursos da área hospitalar, hoje predominantemente privada, para pesquisa e atenção ao paciente, desconstruindo a lógica do asilo e do sistema manicomial. É no sistema aberto que se vislumbra o futuro da psiquiatria moderna. Não há mais necessidade de amaldiçoar o sistema manicomial. Ele faz parte da história. E as criticas e combate que ainda dirige e faz à reforma são, em muitos casos, mais resultado da obsolescência econômica do serviço que prestam do que de sua sustentação científica ou humanista. Pois sempre foi “(é) muito mais difícil ocupar-se da saúde do que da doença” (D.W.Winnicott)

Fazer a lei entrar, plenamente, em vigor é a principal tarefa do momento. Exigir que os governos federal, estadual e municipal estimulem os novos serviços do sistema aberto.
Segundo: é preciso construir um novo modelo de financiamento. A Autorização de Internação Hospitalar tem que se transformar progressivamente em Autorização de Internação Domiciliar. Os recursos têm que sair do hospital e partir para o paciente. Esta transferência é que é a reforma do ponto de vista orçamentário.

Neste longo período de transição, afirmada por Conferências como esta, de olho no Congresso Nacional e no gestor local – que sempre podem fazer a lei recuar e deformá-la – é bom que se diga que o Ministério da Saúde sabe que a regulamentação de uma lei tem sido metade da lei no nosso país. Muitas vezes se regulamenta uma lei desvirtuando seu sentido original. A Coordenação de Saúde Mental, por isso, prestigia a sociedade, o avanço da medicina e as organizações sociais. E expande novos programas, como o De Volta para Casa, um bom exemplo de vitalidade e eficácia da lei.

A reforma psiquiátrica é uma transição. O velho não predomina; o novo ainda não domina. Nessa luta entre o domínio e predomínio, conceito clássico de transição, para afirmar o que deve predominar, temos que levar em conta algumas coisas. A primeira delas é que a reforma tem que ter um sentido mais diretivo do que imperativo. A reforma tem que conquistar pessoas. Uma lei imperativa, vertical, imperial como uma ordenação ibérica, é uma lei que está fadada ao fracasso na área da saúde mental, porque o sofrimento de uma família com seu paciente é tão digno quanto o de um técnico honrado com a demora da reforma. O medo da reforma por parte de muitos familiares é um sentimento legítimo, e nós temos que conquistar a família para a mudança.

A lei tem que ser vista também com um outro sentido: fazer com que as pessoas levem em conta que o processo de integração do cidadão, das várias partes do corpo multifacetado e mutilado do doente, especialmente na área da doença mental, é uma produção histórica que não nasceu na hora da ruptura do equilíbrio psicológico da pessoa. Essa produção histórica – me arrisco a dizer aqui no meio de técnicos da área de saúde da competência dos senhores e senhoras – temo pensar que tenha origem em Louis Pasteur. Ele não imaginava que, quando isolou a bactéria, produzindo a vacina, a sua descoberta – um avanço para a medicina – lançou uma ruptura entre o corpo e a alma das pessoas (o tratamento fragmentado de um todo que não pode ser dividido), que a medicina biológica e a ultra-especialização elevaram a pensamento único.

A idéia de que um agente externo invade o teu corpo e te adoece foi um grande avanço na história da medicina, mas na história da psiquiatria essa conquista de Pasteur produziu um desequilíbrio que muitos psiquiatras e escolas de medicina não se dão conta até hoje. A desintegração entre o corpo e o espírito que a sedação química permanente provoca. Não é por outro motivo que a medicina brasileira, sem exceção, começa seus cursos para jovens entusiastas do saber médico com as aulas de anatomia, quando deveria começar com obstetrícia, ginecologia e puericultura. É pelo nascimento que a vida começa e não pela morte. Não é dividindo o corpo que você ensina uma pessoa a reunificá-lo. Não é pela secção anatômica que se faz o corpo encontrar seu sentido filosoficamente indivisível.

O remédio é importante, mas não é tudo. A medicina psiquiátrica tem que se dar conta, a partir das universidades brasileiras, da existência da psiquiatria democrática. Como não estudar Melanie Klein, Donald W.Winnicott, Michel Foucault, Jacques Lacan, Franco Basaglia, Ronald Lang, Julia Kristeva e outros grandes teóricos da medicina psiquiátrica no mundo? Não se pode imaginar que seja possível formar um profissional hoje nas escolas de medicina brasileiras sem se estudar o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Esta é uma luta que nós precisamos de aliados, principalmente no MEC, para explodir os aparelhos das escolas de psiquiatria brasileira, seus currículos e burocratas que só entendem de seccionar o corpo, a mente e prescrever medicamentos como se usa goma-arábica. Uma psiquiatria conservadora, poderosa e rica, que não quer se abrir ao novo, que é antimanicomial em seus artigos científicos no exterior e manicomial nos seus departamentos e consultórios. É urgente desmanicomializar a medicina universitária brasileira e renová-la academicamente. A reforma é inevitável, mas se poupar a Universidade não se sustentará.

O outro aspecto dessa lei é que ela não se fará exclusivamente pela escuta do sofrimento, criando condições técnicas, orçamentárias, para que um profissional possa ouvir melhor seu paciente, conhecê-lo pelo nome, saber a história de sua doença, de onde ele veio. É preciso também criar espaços protegidos, proteger o paciente psiquiátrico em serviços onde ele possa desenvolver toda a sua potencialidade.

Estar sempre atento às “estruturas abertas” de crianças e adolescentes que cada vez mais vivem dentro da inconsistência da interdição, da autoridade e da lei – e sempre movidos pela paixão, o amor e suas formas de resolvê-lo – reativa, depressiva, eufórica ou maníaca. Agravadas pela evolução da família moderna, a ambigüidade dos papeis sexuais e parentais, a flexibilização dos costumes religiosos e morais, as perversões, o desejo-delírio cotidiano dos registros ligeiros da mídia. Estar atento para a intuição de T.Adorno quando diz que”na psicanálise freudiana nada é mais verdadeiro do que seus exageros”.
Mas não podemos manicomializar os Caps e os Naps, conduzi-los em ordem unida, pois são estruturas antimanicomiais. Não podem ser apropriadas pelo saber manicomial. É preciso educar os deseducados, desconstruir para reconstruir. Um aspecto essencial da reforma é um corolário seu, que já é lei nacional – a lei das cooperativas sociais. É preciso ampliar os espaços de cooperação e de ação dos agentes comunitários e também dos pacientes e dos seus familiares. Vamos desmanicomializar a vida e as relações sociais permitindo a sobrevivência extra-hospitalar e a vida útil dos usuários dos serviços.

V
Por fim, mas não em último, cinco são na verdade os princípios que norteiam a reforma psiquiátrica. Esses cinco princípios são conhecidos desde os anos 80, quando produziu-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que deu origem ao Sistema Único de Saúde de nosso país. Defender os princípios do SUS é defender a reforma psiquiátrica na sua melhor tradução. Primeiro deles, a universalidade do atendimento. Todos têm direito ao atendimento pleno. Nós temos que avançar para que o SUS seja realmente universal. Se aumentarmos a presença do Estado na oferta de serviços de saúde – equilibrando regulação e diálogo – na verdade introduzimos na cabeça e no sentimento das pessoas o princípio de que o Estado presente realiza a sua tarefa ouvindo a força da sociedade. Serviço de saúde eficiente é também salário indireto. Quem presta bom serviço de saúde, na verdade está remunerando melhor um pouco o seu povo.

O segundo princípio é a equanimidade, a idéia da justiça. Não podemos estigmatizar, deixar de fora ninguém que por algum motivo não esteja a nosso alcance. Em terceiro, a descentralização - um princípio caro às reformas italiana e francesa e até a uma parte da reforma dos Estados Unidos. Evitar a desterritorialização do paciente. Acabar com as ambulâncias psiquiátricas de um município a outro, um bairro a outro, carregando o paciente para longe de sua vida. A reforma psiquiátrica tem que ter serviços descentralizados cada vez mais perto das pessoas. Temos que ter, sim, alas psiquiátricas em hospital geral, portas de entrada universal, integração programada de saúde da família.
Muitos psiquiatras me dizem “Paulo, se você colocar um doente mental num hospital geral você pode provocar um mal-estar. Ele vai assustar os pacientes de outra área”. Pois eu digo a esses médicos “Quem assusta mais, um louco em surto ou uma pessoa tendo um ataque cardíaco na sua frente?”. O cardíaco pode matar o louco de susto mais do que o surto mata o cardíaco do coração. Não devemos produzir estigmas. Essa idéia de ver o doente mental de um lado, o cardíaco é do outro, etc, como já disse é bem uma estratégia da divisão do corpo humano que nós não devemos aceitar. Quem o dividiu talvez não tenha se dado conta que a divisão lhe deu uma tradução monetária. Ouso propor que se comece a discutir outro conceito para a internação. A internação se transformou num conceito médico como forma de ser traduzida em horas-leito. Leito em psiquiatria é um conceito ineficaz. Precisa-se de espaço, de escuta, de outras formas de atenção. Trata-se de um tempo que não pode ser medido no relógio. A internação é um conceito pessoal. Quando num fim de semana você desliga o telefone de sua casa, você está internado em sua casa. Quando vai para uma praia, mesmo diante do mar, você está internado numa praia. A internação é um conceito de acolhimento, não é um conceito de remuneração. É um conceito de proteção. Quando se acolhe alguém, se acolhe para ser protegido e não para ser explorado.

O quarto princípio é a integralidade dos serviços e dos dispositivos para o paciente e suas necessidades. Da vacina ao transplante, do velho Haldol aos neurolépticos de última geração, todos têm que estar à disposição do paciente, para que ele crescentemente avance para o tratamento voluntário. Esse é o desafio da reforma: sair do tratamento compulsório, caminhar para o voluntário.

O quinto princípio é o controle social, não só da democracia participativa que os senhores praticam cotidianamente, mas o da democracia representativa. Proteger os Conselhos de Saúde da manipulação política e da desinformação. Mas é preciso não amaldiçoar as formas de representação social que a democracia construiu. Eleger representantes dos setores participativos, mas não impedir a voz daqueles que se elegem representantes da multiplicidade da sociedade no sistema eleitoral regular e que, às vezes, são hostis aos princípios da reforma. É essencial conquistar a política e os políticos para o novo, mas sempre uma dificuldade pela notória preferência de seus membros pelo status quo e o preservacionismo. Deve-se esclarecer, permanentemente, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público o significado do tratamento aberto e os limites saudáveis para a internação. No Brasil, os guardiões da justiça costumam não ter paciência com os valores da lei e tendem a interpretá-la como positivistas.

VI
Termino dizendo o que aprendi na história dessa lei: em todas as decadências, seja social, econômica, política, afetiva, matrimonial, paternal, o primeiro sintoma que aparece é a depravação do sentimento de amizade. Não há decadência na história da humanidade ou das relações pessoais que não tenha começado pelo desaparecimento do sentimento de amizade, do respeito ao outro. O ódio e a destrutividade mais fortes do que o amor e o afeto. O fim da solidariedade é o início da decadência das relações sociais. Por isso, não tenham dúvida, antes de acabar o amor entre as pessoas, acaba primeiro a amizade entre elas. Muitas vezes sofrer é amar quem não se tem mais como amigo. A reforma psiquiátrica necessária e verdadeira só será feita por profissionais que sejam relíquias – médicos, técnicos, enfermeiros, assistentes sociais que, relíquias da humanidade, tenham dedicação integral ao sofrimento dos outros e que vejam a dor do outro como se fosse a própria dor. Dispostos a si criticarem e reverem posições, já que não há batalha vencida nem vigor que não arrefeça entre pessoas vivas e livres. A grande conseqüência da reforma psiquiátrica é que, se nesses 200 anos de manicômio, como provocam os italianos, o psiquiatra ficou solto e o paciente ficou preso, com a reforma implantada o paciente ficará solto e o psiquiatra, preso – preso ao seu paciente, gostando dele, ajudando-o a conviver com sua loucura.


E a tarefa de todos nós é conquistar os inconquistáveis para a reforma psiquiátrica. Será bom para todos. Buscar a saúde no seu sentido pleno e ver a lei como se fosse uma luva: pelo lado de fora em contato com o mundo, por dentro sendo o próprio paciente. Os dois só existem a partir do momento em que alguém que os respeitem – generosos, informados e humanistas – calcem a luva em sua própria mão. (parafraseando Lygia Clark sobre a proximidade entre a sua arte e a de Hélio Oiticica).

Volto a Vieira: uma coisa é viver, outra é durar. O que deve pretender a medicina?

Um grande abraço e muito obrigado.

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