PICICA: "Antes era geração Coca Cola, agora vive-se uma geração Rivotril, o mundo feito manicômico onde ninguém escapa das etiquetas. O espectro da loucura não tem fim, com seus transtornos mentais, desordens psíquicas, bipolaridades. A classe-média está em peso no analista a R$ 100 por sessão; mas os pobres basta o SUS entupir de tarjas-pretas --- sobretudo o Rivotril, o segundo remédio mais usado no país."
Como a psiquiatria pode destruir a juventude.
Nave dos loucos, 1492, Hieronymus Bosch
O nome Quadrado dos loucos não é à toa. Não somente porque entusiasta do realismo mágico, fantástico, maravilhoso e quejandos, do surrealismo, do desassossego e da esquizofrenia, mas também por sua simpatia a movimentos pelos direitos dos insanos. Pelo ódio ante a impostação profissional, a sisudez acadêmica, os falsos grandes sentimentos, contra o senso comum de almoço de domingo da "classe-média". Há sempre muito amor na loucura, mas há sempre um pouco de razão no amor.
Somente um leitor apontou a ligação do Quadrado dos loucos com o conto No quadrado de Joana, de Maura Lopes Cançado, obra de realismo alucinatório datada de 1968, republicada recentemente na antologia Os melhores contos de loucura. Antes de fechar com o nome atual do blogue, eu estava entre A desordem no coração da ordem e Nave dos loucos ou Nau dos insensatos, uma metáfora onipresente na pintura, no teatro, na música. Confesso que optei pelo presente nome pois passa a impressão de não querer ser levado tão a sério, --- menos para não ser levado efetivamente a sério, do que para sê-lo num sentido mais profundo.
"A realidade é pedra. Joana pode dependurar a hora na parede e acrescentar realidade a isto. Foi feita certa, no tempo certo do mundo novo. Qualquer desvio lhe é proibido. Haverá a nova língua que a dança dos sons talvez esteja impedindo de se formar." --- do conto citado.
É colossal a tradição dos loucos e se confunde com a história da arte. Vem desde os ditirambos dionisíacos, atravessa a literatura satírica latina, se institucionaliza na idade média com o bobo-da-corte, chega à maturidade crítica com Erasmo de Roterdã, que elogia a loucura subversiva, e doravante se converte em tópico oficial da cultura.
Maior louco de todos os tempos, e menos germânico dos filósofos alemães, F. Nietzsche foi o primeiro a martelar a saúde pregada pelas novas ciências do corpo e da mente. Conhecimento reativo, que tinha por função social tolher a força afirmativa e essencialmente herética da desmedida. Para Nietzsche, a grande saúde não dispensa a loucura (nem o sofrimento). Por isso, enxerga a genuína vida filosófica como um clínica, como um tonificante desarrazoado para o corpo.
No século 20, os loucos se organizam politicamente em movimento antimanicomial, uma peça da resistência para a esquerda. Basta lembrar como, entre 1964 e 1985, a ditadura cívico-militar brasileira aprisionava opositores em hospícios. Na História da Loucura (e na obra em geral), Michel Foucault produz linhas memoráveis sobre as relações entre loucura e disciplina, normalidade e ordem social, monstruosidade e biopolítica.
Navio dos loucos, 1970, The Doors (reparar no bebop à Charles Mingus da bateria)
No começo do século 21, a luta continua. Há frentes contra os efeitos de certa psicanálise, de determinada psicologia, e da psiquiatria como um todo. Esta última "ciência" possivelmente seja a mais perniciosa, porque aliada ao conglomerado de interesses da indústria farmacêutica.
Antes era geração Coca Cola, agora vive-se uma geração Rivotril, o mundo feito manicômico onde ninguém escapa das etiquetas. O espectro da loucura não tem fim, com seus transtornos mentais, desordens psíquicas, bipolaridades. A classe-média está em peso no analista a R$ 100 por sessão; mas os pobres basta o SUS entupir de tarjas-pretas --- sobretudo o Rivotril, o segundo remédio mais usado no país.
Sim, muitas pessoas estão deprimidas e é culpa do capitalismo cognitivo. Afinal, não temos como ser absolvidos pelo tribunal difuso e implacável, pelos mil olhares que nos julgam de todas as direções e sem descanso. É preciso passar nesse julgamento profissonal, "estético", financeiro, sexual, intelectual, emocional, moral etc. Ressentidos, interiorizamos a culpa sistêmica do modo de produção injusto. É aí que a milagreira psiquiatria se instala, ao colonizar as paixõe$ tri$te$ e controlar impulsos que poderiam retornar das gavetas como revolução.
Vale a visita ao excelente site do movimento antipsiquiátrico. Logo na capa, dão "25 razões porque a psiquiatria deveria ser abolida". Depois, ler a seção 'perguntas freqüentes' e 'fatos rápidos'. E não se trata de proselitismo a homeopatias ou outros mambojambos esotéricos, como se poderá ler em 'alternativas'. Enfatiza o escândalo de receitar drogas para as crianças e jovens, prática que se dissemina inclusive nas escolas. Enquanto maconha, MDMA e LSD, relativamente inofensivas, são criminalizadas, droga-se a juventude com Rivotril, Anafranil e outras substâncias pesadas.
O vídeo a seguir, da mesma organização, exprime de modo tocante o que está por trás dessa sedação em massa protagonizada pela psiquiatria nos jovens:
Post scripta:
O leitor que sagazmente assinalou o parentesco entre o blogue e o conto No quadrado de Joana foi Carlos Magalhães, blogueiro amigo de conspiração, que edita o Sociologia do Absurdo.
Aproveito a deixa para recomendar o Blog do Picica, do amazonense Rogelio Casado, um incansável militante do movimento antimanicomial.
Fonte: Quadrado dos Loucos
Nenhum comentário:
Postar um comentário