PICICA: "Imagine, caro leitor, um país que ama futebol e cuja seleção acabou de ganhar a Copa do Mundo. Ao mesmo tempo, surge um ídolo nacional na Formula 1, vencendo corridas e disputando campeonatos. A economia cresce há quatro anos consecutivos acima de 10% ao ano, as famílias são carregadas pelas telenovelas e o cinema é fértil em autores nacionais. Este é o Brasil do início de 1971, onde Pelé e Emerson Fittipaldi são unanimidades, e onde o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici é bem avaliado pela maioria. (...) Essa é a superfície."
por João Villaverde Imagine, caro leitor, um país que ama futebol e cuja seleção acabou de ganhar a Copa do Mundo. Ao mesmo tempo, surge um ídolo nacional na Formula 1, vencendo corridas e disputando campeonatos. A economia cresce há quatro anos consecutivos acima de 10% ao ano, as famílias são carregadas pelas telenovelas e o cinema é fértil em autores nacionais. Este é o Brasil do início de 1971, onde Pelé e Emerson Fittipaldi são unanimidades, e onde o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici é bem avaliado pela maioria. Essa é a superfície. Algumas centenas de pessoas tinham sido presas ou sofrido repressão militar desde o fim de 1968, quando o então presidente Arthur da Costa e Silva autorizou o Ato Institucional nº 5, que apertou de vez o governo instaurado por meio de golpe em 31 de março de 1964. Se as eleições de 1965 foram “puladas” e os protestos estudantis de 68 reprimidos, é com o AI-5 que a situação mergulha, enfim, para uma ditadura de fato. O cineasta Glauber Rocha finalizava O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, seu primeiro filme em cores, naquela passagem de 1968 para 69, quando precisou deixar o país – e terminar o trabalho fora – para não sofrer represálias, uma vez que era ligado intelectualmente ao Partido Comunista Brasileiro. Gilberto Gil, artista popular da mais nova moda nacional no campo musical – a Tropicália – deixou o país com “Aquele Abraço”, em 69, junto do amigo Caetano Veloso. Chico Buarque, da MPB, já não estava mais aqui, e a bossa nova já tinha sido extinta pelos próprios criadores, depois que Carlinhos Lyra e Vinícius de Moraes, antevendo o aperto da ditadura, compuseram “A Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, de 1965, onde os versos anunciavam o que viria a partir de 1969: “Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê, que nem se sorri, se beija e se abraça, e sai caminhando…” Esse era o subterrâneo. Os intestinos do Brasil, que detinha mais da metade dos 90 milhões de habitantes vivendo em situação de pobreza ou pobreza extrema, segundo conceitos de política social desenvolvidos nos anos 90, quando a ditadura, no entanto, já era passado — e a pobreza persistia. As pessoas olham para trás, hoje, e recriminam o trabalho e as ideias dos guerrilheiros. Para aqueles que, em tese, concordam com a luta contra o regime militar e criticam aqueles jovens que pegaram em armas como sonhadores. “Como 300 meninos e meninas, recém-saídos das fraldas, poderiam derrubar um governo em um país tão grande?”, perguntam. Eles têm razão. Mas, se a vida não é lutar pelo que se acredita, a vida é o que? Tomar caipirinha numa casa de praia e fazer de conta que nada acontece da janela para fora, pode responder o incauto. Esta resenha não é para incautos. Não é para quem tanto faz, tanto fez quando confrontado com a história moderna do seu país. Este não é um texto para a turma do “deixa disso”, que nas escolas, nas ruas e nas casas prefere apartar brigas. Este é um texto de quem briga. E de quem acha certo brigar*. Rubens Paiva era deputado federal quando o regime militar instaurado ilegalmente por meio de golpe cassou seus direitos políticos. Diferentemente, no entanto, dos quadros que pertenciam ao governo de João Goulart, deposto pelo golpe, como Darcy Ribeiro, San Tiago Dantas e Celso Furtado, Paiva não precisou deixar o país. Ficou e não abandonou sua vida política. Mas uma coisa era ter vida política antagônica ao regime entre 1964 e 68, e outra bem diferente a partir de 1969. Rubens Paiva desapareceu, numa tarde em fevereiro de 1971, depois de entrar em um carro com militares. Ele nunca mais foi visto. Esta é a história que o jornalista e tradutor Jason Tércio foi pesquisar, e que resultou em Segredo de Estado: O desaparecimento de Rubens Paiva. Logo de cara, o primeiro parágrafo do livro mostra ao leitor a forma que Tércio escolheu para narrar tudo o que levantou por meio de pesquisa e entrevistas: “Seu colega, moreno e de costeletas, um pouco mais velho, acende um cigarro e dá uma profunda tragada. Olhos fixos na pista”. Isto aconteceu? Eu não sei. Tércio também não. Saber que um dos capachos do regime, destacado pelo governo para acompanhar Rubens Paiva, dá uma “profunda tragada” no cigarro enquanto mantém os olhos fixos na pista é totalmente impossível hoje. O leitor encontrará relatos desses ao longo de todo o livro, desde os pensamentos do coronel Tigre durante uma missa em que acompanha a mulher Elizete, até os diálogos entre os militares que desapareceram com Rubens Paiva. Tércio romanceia uma história real, cujos detalhes mais sensíveis (ou “clímax”, para ficar no linguajar frio da resenha) não são conhecidos: o desaparecimento. Até hoje, o Estado, por meio de prerrogativas legais, diz que Rubens Paiva desapareceu sem a participação de servidores públicos. Outros dizem que ele foi torturado até a morte. Outros, que foi assassinado de maneira fulminante. Outros, que ele de fato desapareceu sem deixar vestígios. Qualquer escritor, diante de um caso desses, tem um campo vasto para contar histórias. Por se tratar, no entanto, de uma história sensível – não apenas para os familiares de Paiva, mas para todos os brasileiros que viveram aqueles tempos – aquele que se detém sobre esse caso precisa (porque precisa mesmo) conversar com todos os lados, levantar todos os documentos que forem possíveis ser levantados, e escrever com sensibilidade os pontos que vão além de fevereiro de 1971, a partir de quando poucos que realmente sabem o que aconteceu têm disposição para relatar – ou estão vivos para contar. Tércio romanceia, de fato, mas aquilo que pode ser romanceado – os pensamentos mundanos de um coronel da ditadura durante uma missa, ou o ato de fumar desesperadamente de um soldado, ou os goles de whiskey dados por Waldyr Pires na casa de Paiva, ou o modo com que a viúva relata, aos amigos, o medo sobre o que pode estar sendo feito de seu marido. O que não pode ser romanceado, Tércio não romanceia. O autor dá à história um gancho policial. Fica claro, ao terminar o livro, que este foi escrito para aquele que quer ler uma boa história, e não necessariamente entrar em documentos encardidos e impressões de um passado que, hoje, 2011, parece tão distante quanto o fim da escravidão. Uma realidade ditatorial, em que os direitos de expressão são suprimidos e as artes são censuradas, parece filme. Filme, aliás, parece ser o objetivo de Tércio. O autor destas linhas ficou com a impressão latente ao longo da leitura – e anotou para si em muitas páginas, como lembrete – de que o livro é mais um roteiro para cinema que um livro-reportagem, em si. Não há, aqui, uma discussão de valor, mas de mérito. Não entendo livro-reportagem como algo superior a roteiro para cinema, ou vice-versa, mas textos diferentes em si. Há alguns pontos que deixam latente uma falta de revisão mais vigorosa do autor, que se sentiu impelido, me parece, a publicar logo um trabalho que lhe consumiu muito tempo. Há desde pequenos erros de digitação apressada, como a falta de “l” em Waldyr (Pires) na página 68, há formulação ruim de frases, como o parágrafo inicial da pagina 46, quando Tércio apresenta Bocayuva Cunha, e diz que ele “mora numa cobertura aqui mesmo na avenida com sua segunda esposa…”. Onde seria “aqui”? Na apresentação, Tércio fala que escreveu parte do livro no Rio, em lugares que Paiva visitou ou foi visto nos instantes finais de sua vida. É compreensível, portanto, que muitas de suas anotações iniciais tenham sobras como “aqui”, em referência ao lugar onde ele, Tércio, está. Se a narrativa inteira fosse construída em forma de relato, sem problema. Como não é, essas pequenas sobras, não suprimidas do texto final, surgem para confundir uma leitura menos apressada. Nada, é claro, inviabiliza a narrativa, que melhora conforme o livro avança. Podem apostar: virará filme. * * * Quando um psicólogo caribenho escreveu Os deserdados da Terra, em 1965, sobre os conflitos em torno da independência da Argélia, ele advogou que a violência é a única forma de o oprimido mostrar ao opressor que ele não o engolirá mais. Vivemos 70, 80 anos ou pouco mais, batendo nos 90 e poucos — no entanto, a maioria dos que chegam lá já está próxima da senilidade. Como diria Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta italiano, somos, todos nós, filhos de nossos antepassados – não os familiares, mas filhos da filosofia grega, da barbárie das Cruzadas, da Noite de São Bartolomeu, da Revolução Francesa, da Comuna de Paris, dos cineastas de Hollywood, da Revolução Russa, do cubismo – e vivemos inseridos em nossa circunstância. Temos a chance, portanto, de optar por um caminho nosso, tendo, no entanto, um passado de civilização e excessos humanos por trás, e as circunstâncias de nosso tempo como fatores que delimitam até onde podemos ir. De resto, é conosco. Havia um país sendo construído em 1964. Havia o CPC, dos estudantes e intelectuais, havia o Cinema Novo, o futebol de Garrincha e do Flamengo, a bossa nova, o samba-enredo, o choro, Villa-Lobos na música clássica, os irmãos Villas-Bôas e Darcy Ribeiro na antropologia, Celso Furtado na economia, uma literatura de Clarice e Guimarães, mas que já tivera Machado, Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto, uma indústria siderúrgica, petroleira, têxtil e de calçados. Tínhamos sim uma inflação crônica, e uma massa de miseráveis a ser incorporada. Não tivemos a chance de testar mais ou de resolver os problemas por nós mesmos. Inflamados por uma publicidade completamente esquizofrênica que vazava dos jornais e da embaixada americana, e que encontrava nas alas conservadores da sociedade – então profundamente dividida em classes, devido à renda pessimamente distribuída – os militares tomaram para si a missão de “salvar o país”. Ajudados pela retórica inconseqüente do presidente João Goulart, tomaram o país por meio de golpe, em 1964, com apoio entusiasmado das elites descerebradas, que se prestaram, inclusive, a doar ouro “para o bem do Brasil”. Olhando agora, pode parecer, de fato, arriscado pegar em armas e lutar contra esse pessoal. Mais fácil é ligar a televisão, viajar à casa de praia, à Europa, comprar roupas da moda e deixar o tempo passar. Em algum momento aquilo passa, como passou, de forma lenta, segura e gradual, em março de 1985. Mas em 1971 não havia qualquer perspectiva de que aquilo fosse passar. A vida é uma escolha. E por mais que isso pareça um clichê, e de certa forma é, a ideia não pode ser esquecida. Alguns lutam, outros não. Fica para a história quem lutou. ::: Segredo de Estado: O desaparecimento de Rubens Paiva ::: Jason Tércio ::: ::: Objetiva, 2011, 336 páginas ::: compre na Livraria Cultura ::: -- Para saber mais sobre o(a) autor(a) do post, acesse o Amálgama -- -- Compartilhe este post -- |
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