março 31, 2011

"A Itália redescobre a sua classe trabalhadora", por Serge Quadruppani

PICICA: "Boa parte da Itália parece ter redescoberto a existência de uma classe trabalhadora combativa quando ocorreram os referendos sobre a flexibilização do trabalho e a redução de custos, impostos pela diretoria da fabricante de automóveis Fiat ao pessoal de duas unidades: Pomigliano d’Arco, próximo de Nápoles, em junho de 2010, e Mirafiori, em Turim, no último mês de janeiro."
Bandeira italiana - imagem postada em mos-art.it

MOVIMENTO SINDICAL
A Itália redescobre a sua classe trabalhadora

O sindicalismo combativo renasce na Itália: apesar dos apelos da esquerda institucional para a aprovação de certos acordos trabalhistas, operários da Campânia e de Turim votaram contra a diminuição de horas de intervalo,a organização da escala semanal ao bel prazer dos patrões e a possibilidade da jornada de 10 horas

por Serge Quadruppani
  
Boa parte da Itália parece ter redescoberto a existência de uma classe trabalhadora combativa quando ocorreram os referendos sobre a flexibilização do trabalho e a redução de custos, impostos pela diretoria da fabricante de automóveis Fiat ao pessoal de duas unidades: Pomigliano d’Arco, próximo de Nápoles, em junho de 2010, e Mirafiori, em Turim, no último mês de janeiro.
Através desses acordos de empresas, arrancados mediante a promessa de investimentos, afirmava-se um projeto mais geral: reconstruir as relações industriais nascidas nos anos 1970 e 1980 com o propósito de criar um direito sindical limitado e uma maior disciplina do trabalho.
O inventor dessa estratégia de choque, Sergio Marchionne, ítalo-canadense residente na Suíça, soube jogar com maestria duas paixões italianas contraditórias e complementares: a tendência à autoflagelação e o patriotismo. O administrador-delegado da Fiat permitiu que este último sentimento se difundisse nas primeiras páginas dos veículos de imprensa quando seu grupo adquiriu, graças à garantia financeira do governo de Barack Obama, 20% e mais 25% da americana Chrysler, ameaçada de falência. As duas empresas poderiam se fundir até 2013.
Ademais, quando Marchionne declara que “a única zona no mundo onde o conjunto do sistema industrial e comercial do grupo Fiat perde dinheiro é a Itália1”, ele é ouvido com deferência pelos dirigentes políticos de ambos os lados, que se abstêm de interrogar a política geral do grupo, cuja maior parte dos veículos é produzida na Polônia, na Turquia e, sobretudo, no Brasil. Essa exaltação orquestrada redobrou quando, em 21 de abril de 2010, ele anunciou, juntamente com o herdeiro do império Agnelli, “o mais extraordinário plano industrial que nosso país já teve”: o projeto Fabbrica Italia. Além da duplicação da produção de veículos em cinco anos, eles prometem que o grupo realizará “70% de seus investimentos mundiais nas unidades italianas”.
Ao contrário dos projetos precedentes, este, que não foi negociado, apresenta-se como um business plan e não compromete em nada a empresa. No entanto, como bem lembra um manifesto de 132 economistas, “as prioridades da Fiat estão sempre mais orientadas para a dimensão financeira, à qual poderia ser sacrificado o futuro da produção de carros na Itália e, até mesmo, a propriedade das unidades fabris2”. De fato, entre 1970 e 2006, os ativos industriais da Fiat passaram de 72% a 30%, ao passo que os ativos financeiros passaram de 28% a 70%3. Se ignorarmos como a Fiat poderia duplicar suas vendas de veículos produzidos na Itália, todo esse estardalhaço parecerá ideal para estimular as cotações na bolsa.
É em decorrência de tais promessas que, sob a ameaça de fechamento das unidades, o administrador-delegado vai impor sucessivamente dois “acordos”. O primeiro visa a fábrica de Pomigliano. Nessa região de Campânia, considerada mafiosa e indolente, a diretoria, desde 2007, havia tentado criar a “Nova Pomigliano” graças a um estágio obrigatório de dois meses (sob vigilância de fiscais e com proibição de idas ao banheiro) destinado a formar mão de obra nos moldes da World Class Manufacturing, metodologia de organização do trabalho e aceleração de ritmos.
Uma campanha na imprensa, o envolvimento das famílias, envio de vídeos e mensagens SMS, bem como cartazes, revistas e sites na internet com mensagens orwellianas são instrumentos que dariam aos trabalhadores o sentimento de pertencer a uma comunidade de empresa. Essa política suscitou resistências em 10 de janeiro de 2008, por exemplo, um cortejo interno de 200 trabalhadores terminou com a demissão de sete deles.
Apesar dos apelos de outros sindicatos e de representantes eminentes da esquerda institucional para a aprovação dos “acordos”, o “não” contou com 38,8% dos votos na fábrica da Campânia e 45,9% na de Turim. Nesta última, os operários das linhas de produção, os primeiros afetados pela reorganização do trabalho, votaram majoritariamente pelo contra. Contra a diminuição de horas de pausa, a mudança do horário de almoço para o final do expediente, a possibilidade da semana de 48 horas, a organização da escala semanal ao bel prazer dos patrões, a possibilidade da jornada de dez horas, o não pagamento dos dois primeiros dias de licença-saúde, a supressão de fato do direito de greve e a exclusão dos sindicatos que não assinarem o acordo.4
Para atingir seus objetivos, Marchionne teve que criar uma nova sociedade, a Newco, que se desvinculou da confederação patronal italiana (Confindustria), o que lhe permitiu não observar os acordos coletivos nacionais. Essa estratégia, embora oficialmente desaprovada pela Confindustria, despertou o interesse de outros patrões.
Mas, desde 16 de outubro de 2010, uma manifestação nacional já mostrava o apoio de amplos setores da sociedade à resistência dos trabalhadores. O coletivo Uniti contro la Crisi constitui-se em torno da Fiom a Federação dos Operários Metalúrgicos, reunindo estudantes da Onda5, organizações de imigrantes, opositores à privatização do setor de água… Seus representantes estavam presentes na tribuna, em 27 de janeiro, bem como o de um coletivo de escritores proscritos das bibliotecas da região de Vêneto, por obra da Liga do Norte6. Na véspera, a edição local do L’Unità estampava: “Trabalhadores e escritores em greve”.
Embora os jornais berlusconianos conclamem a uma “marchionnização” da Itália, a “reeducação do país no desafio à competitividade global” não está garantida.
Serge Quadruppani
Escritor. Sua última obra publicada: La politique de la peur , Seuil, Paris, 2011.


1  28 de julho de 2010, citado em: Fondazione Centro per la Riforma dello Stato (Gruppo Lavoro), Nuova Panda Schiavi in mano, Derive Approdi, Rome, 2010.
2  Publicado no suplemento especial do Manifesto de 28 de janeiro de 2011, p. 15.
3  Números obtidos de Nuova Panda…,op. cit.
4  Para uma análise precisa dos dois acordos, ver Nicola Cianferoni, “Quand la Fiat veut briser les droits syndicaux”, LaBreche.ch, 19 de janeiro de 2011.
Cf. “La Ligue du Nord joue les censeurs”, CourrierInternational.com, 21 de janeiro de 2011.
Cf. “La Ligue du Nord joue les censeurs”, CourrierInternational.com, 21 de janeiro de 2011.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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