março 16, 2011

"O desafio da desinstitucionalização nos hospitais psiquiátricos" (Jornal Cruzeiro do Sul)

PICICA: "Desinstitucionalizar, como nos refere Saraceno, não é simplesmente tirar o sujeito do hospital (desospitalizar), mas é construir práticas e saberes que produzam determinadas formas de perceber, entender e relacionar-se com os fenômenos sociais e históricos; é preciso questionar as bases do saber psiquiátrico e a função social e política desempenhada pela ciência, pelos técnicos e pelo manicômio (Barros, 1991)." Em tempo: No Amazonas, o Censo da População Psiquiátrica, proposta pela Coordenação Estadual de Saúde Mental - gestão 2003-2007, e para o qual conseguiu-se verba do Ministério da Saúde, não saiu do papel. Sua importância reside no mapeamento da espacialização dos portadores de transtorno mental obtidas a partir da localização de suas moradias, para posterior planejamento da implantação dos Centros de Atenção Psicossocial (dispositivo que substitui o hospício e seu ambulatório medicalizador) de acordo com o território onde essas pessoas habitam. É lamentável que os órgãos de classe não acompanhem as políticas públicas de saúde mental. Fica-se à deriva, à espera de que o acaso resolva os problemas acumulados pelo setor ao longo do tempo. Por sua vez, a mídia tem dificuldade de acompanhar o processo da Reforma Psiquiátrica. E não é por falta de documentos sobre tais políticas. Eles existem, mas não são consultados. Lástima! 

 20 Anos de Luta por uma sociedade sem manicômios - Associação Chico Inácio (AM) presente em Bauru

O desafio da desinstitucionalização nos hospitais psiquiátricos

O Censo analisou os 58 hospitais psiquiátricos do Estado, localizados em 38 municípios vinculados a 15 Departamentos Regionais de Saúde (DRS)
Notícia publicada na edição de 15/03/2011 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.
* Mariane Aparecida Terssoni da Conceição

Este artigo objetiva fazer uma análise sobre o processo de institucionalização das pessoas em situação de sofrimento mental, tomando como eixo o trabalho do Censo Psicossocial de pacientes moradores de hospitais psiquiátricos, realizado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo em parceria com a Fundação do Desenvolvimento Administrativo -Fundap, no ano de 2008.

A Lei Federal nº. 10.216/ 2001, chamada "lei da reforma psiquiátrica no Brasil", teve como base o projeto original do deputado Paulo Delgado e determinou que os pacientes há longo tempo institucionalizados em hospitais psiquiátricos devem ser objeto de política específica. No Estado de São Paulo foi constatado em 2005 que mais de 50% dos leitos psiquiátricos estavam ocupados por pessoas internadas há mais de um ano. Diante desse cenário, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo determinou que se fizesse um diagnóstico situacional desses pacientes. Esse trabalho denominou-se: "Censo Psicossocial de Pacientes Moradores em Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo".

O Censo analisou os 58 hospitais psiquiátricos do Estado, localizados em 38 municípios vinculados a 15 Departamentos Regionais de Saúde (DRS) e considerou que os sujeitos em estudo fossem todos usuários dos hospitais psiquiátricos próprios e conveniados pelo SUS (SP), com tempo de internação igual ou superior a um ano.

Identificou-se que 56 hospitais psiquiátricos possuíam "moradores", variando de uma a 512 pessoas internadas, o que representou um total de 6.542 "moradores" e uma média de 53% de ocupação de leitos psiquiátricos do convênio SUS. Dessa população, 62,8% estavam na faixa etária dos 40 aos 70 anos, 30% correspondeu a pessoas com idade acima de 60 anos e 0,4% foi do grupo com idade inferior a 18 anos. Constatou-se que a maioria é do sexo masculino e em relação ao estado civil, 82,19% pessoas eram solteiras e 62,7% não eram alfabetizadas. O Censo localizou o município de origem de 5.373 pessoas, o que corresponde a 84,63%, que têm conhecimento de sua naturalidade e identificação familiar (64% conta com família localizada), mas somente 47,68% recebiam visita de familiares ou de outras pessoas.

O número de "moradores" dos hospitais psiquiátricos por município variou de 10, nos municípios de Nova Granada e Amparo, a 1.039, no município de Sorocaba, com uma variação do número de moradores de 2.219, no DRS XVI Sorocaba, a 28, no DRS II Araraquara.


Considerando o total de 6.542 "moradores" e a natureza dos hospitais psiquiátricos, o Censo revelou que nos hospitais de gestão estadual (correspondente a 69%), a maioria das pessoas estava internada em hospitais privados. Na gestão municipal 990 "moradores" estavam internados em hospitais de natureza filantrópica (31%) e 959 em hospitais privados (30%).

No que se refere ao diagnóstico, constatou-se que 90% da população total do Censo apresentou somente um diagnóstico psiquiátrico, prevalecendo o de esquizofrenia, seguido pelo de "retardo mental". O maior percentual de "moradores" foi internado por situação de precariedade social combinada com transtorno mental; de cunho involuntário foi de 77,21%, sendo 6,22% por internações compulsórias (ordem judicial). Na análise dos dados do Censo é importante destacar a gravidade do cenário atual no Estado de São Paulo e mais ainda no nosso município e na nossa região, com o maior número de pacientes "moradores" do Estado de São Paulo.

Essa situação requer ações estratégicas para desinstitucionalizar essas pessoas que durante muitos anos foram excluídas da convivência social. Desinstitucionalizar, como nos refere Saraceno, não é simplesmente tirar o sujeito do hospital (desospitalizar), mas é construir práticas e saberes que produzam determinadas formas de perceber, entender e relacionar-se com os fenômenos sociais e históricos; é preciso questionar as bases do saber psiquiátrico e a função social e política desempenhada pela ciência, pelos técnicos e pelo manicômio (Barros, 1991).

Neste contexto, perguntamos: será que a ciência tem conseguido restituir a essas pessoas o direito à liberdade, à dignidade e aos direitos sociais, previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos? Será que nós, cidadãos, estamos construindo uma sociedade de direitos? Será que conseguimos conviver com as diferenças, compreendendo as nossas, sem excluir as do outro? Temos justificado as desabilidades criando lugares para instituirmos as pessoas "diferentes": criamos os asilos para os "velhos desamparados" ou as casas de repouso para os idosos "doentes". Concordamos com os hospitais psiquiátricos porque nos protegem da insanidade do outro, até, talvez, da periculosidade.

É imperativo transformar o olhar para que possamos, ao menos, ensinar os nossos filhos que é possível realizar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois, também podemos aprender a ler o movimento da reforma sanitária e compreender a luta pela liberdade, pela dignidade e pelos direitos sociais de todos os cidadãos. E, então para que serviu o Censo? O que os nossos gestores municipais têm modificado a partir do que foi cientificamente constatado?

* Mariane Aparecida Terssoni da Conceição, Fabiely Cancian e Andreza Alves, alunas do curso de Terapia Ocupacional da Uniso; profa. Soraya Diniz Rosa (orientadora), terapeuta ocupacional, doutoranda do Programa de pós-graduação em Educação da Ufscar e professora do curso de Terapia Ocupacional da Uniso. (soraya.rosa@prof.uniso.br)

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