PICICA: "Talvez Peret tenha se dado bem com os índios porque, á semelhança deles, era um grande contador de histórias. Numa longa entrevista recente, ele diz o que aprendeu com as histórias dos índios. -“Eles me domaram e me educaram com carinho e amor. Desenvolveram meu potencial ético. Aprendi a valorizar e a respeitar as pessoas, porque nas culturas indígenas se exercita a solidariedade. As regras básicas das sociedades indígenas são a tolerância, a lógica e a sabedoria de viver em harmonia com a natureza e em paz com seus semelhantes. Com eles ganhei razão de sobra para viver por uma causa justa”."
João Américo Peret - imagem postada em velhosamigos.com.br
PERET, O CONTADOR DE HISTÓRIAS
José Ribamar Bessa Freire
20/03/2011 - Diário do Amazonas
A foto de aniversário, que me enviou por e-mail em janeiro de 2009, é típica de álbum de família. Ele e dona Marly, com quem se casou em 1958, estão sentados. No colo dela, a bisneta Izabelle, que completava um aninho. O cenário é decorado com balões coloridos e mesa com bolo e vela. Embora já ferido de morte pelo câncer, ali, naquela foto, está inteiro João Américo Peret, bisavô e amigo dos índios. Avô e amigo dos índios. Pai e amigo dos índios. Esposo e mais amigo dos índios. Amigo e amigo dos índios.
João Américo Peret foi isso desde que nasceu em 1926: amigo dos índios e amigo dos amigos dos índios, a quem sabia reconhecer. Perambulou por aldeias de todo o Brasil, viveu no Acre, no Amazonas, em Mato Grosso, varou rios e igarapés como sertanista do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da Funai, contraiu malária mais de trinta vezes. Conviveu com o marechal Rondon, Darcy Ribeiro, irmãos Villas Boas e outros indianistas. Deixou-se civilizar pelos índios Kisêdjê, do Xingu, que falam uma língua Jê e são também conhecidos como Suyá ou Beiço-de-Pau.
A denominação Beiço-de-Pau surgiu porque os Suyá usavam grandes discos labiais e auriculares que simbolizavam a importância do ato de cantar e de ouvir para todo o grupo. A relação deles com a sociedade nacional foi dolorosa, marcada historicamente pela violência e por sucessivos massacres. No final dos anos 1950, os irmãos Villas Boas organizaram um grupo, integrado por índios Juruna, para estabelecer relações pacíficas com os Suyá, que estavam, com toda a razão, muito desconfiados e temerosos com os “civilizados” que promoviam atos de barbárie, atacando-os.
Amansando brancos
O “namoro” - era assim que se chamava o período de aproximação com índios arredios – durou um ano, até que se conseguiu criar as condições de um diálogo amistoso. Esse período ficou conhecido como “o tempo em que os brancos vieram nos procurar”. O próprio Peret descreve o processo de “pacificação”, no qual conseguiu conversar pela primeira vez com um deles, o mais aguerrido de todos.
- “O índio Suyá sentou ao meu lado, num tronco de árvore, colocou a mão no meu ombro e disse: eu achava que não ia conseguir amansar você! Mas consegui. Aí ele retirou o seu disco labial e me deu de presente como prova de amizade. Eu é que era considerado o “branco bravo”. Guardo até hoje o disco como lembrança desse momento emocionante”.
Talvez Peret tenha se dado bem com os índios porque, á semelhança deles, era um grande contador de histórias. Numa longa entrevista recente, ele diz o que aprendeu com as histórias dos índios.
-“Eles me domaram e me educaram com carinho e amor. Desenvolveram meu potencial ético. Aprendi a valorizar e a respeitar as pessoas, porque nas culturas indígenas se exercita a solidariedade. As regras básicas das sociedades indígenas são a tolerância, a lógica e a sabedoria de viver em harmonia com a natureza e em paz com seus semelhantes. Com eles ganhei razão de sobra para viver por uma causa justa”.
Essa aprendizagem continuou com os Karajá do vale do rio Araguaia, com quem conviveu. Peret conta que ficou intrigado porque os pássaros domesticados nas aldeias Karajá não eram aprisionados em gaiolas, circulavam livremente, voavam para longe, mas sempre voltavam à noitinha. - “Por que é que eles sempre voltam?” – perguntou a Didiué Karajá, que lhe respondeu:
- “Porque eles são nossos parentes. Quando nascem, nós mastigamos os alimentos e passamos com a boca para o bico deles. Eles fazem parte da nossa família. São livres, não são propriedades nossas. Por isso, voltam e às vezes trazem seus novos amigos para nos visitar”.
Na entrevista concedida a Marília Bellizzi Jaccoud, em dezembro de 2005, Peret conta que voltando à aldeia muitos anos depois encontrou sua amiga Lauaxiro Karajá e ficou surpreso com a passagem do tempo, que deixara marcas visíveis no corpo dela: - “Minha amiga, você envelheceu muito rápido. O que houve?” – ele perguntou. “Ela me olhou calmamente e me disse: espera aí. Apanhou um espelho e disse: olhe a sua cara. Nós nos abraçamos e rimos às gargalhadas”.
Acervo de fotos
Parte da infância, João Américo passou no Acre, onde seu pai, o engenheiro agrônomo Achylles Peret, criou a Escola de Aprendizado Agrícola, em Rio Branco. A família que morava no local da própria Escola, cultivava horta e pomares. Nas férias, Peret ia para Manaus, onde depois viveu algum tempo, trabalhando nos jornais A Crítica e Jornal do Comércio, antes de estudar etnografia no Rio de Janeiro e de estagiar no Conselho Nacional de Proteção aos Índios.
Quando a expedição do padre Calleri, em 1968, desapareceu em território dos índios Waimiri-Atroari, acossados pelos brancos, quem conseguiu localizar os restos mortais de sete homens e duas mulheres foi uma equipe chefiada por Péret. “O padre, cuja incompetência era monumental, foi vítima de sua própria ignorância, por não saber lidar com os índios” – ele disse.
Peret escreveu vários livros, publicou séries de reportagens sobre os índios nos principais jornais e revistas do país, produziu relatórios, escreveu roteiros para filmes documentais no Xingu, organizou exposições de fotografias no Brasil e no exterior, com fotos de seu acervo – são milhares de fotos que documentam uma parte da história indígena.
Com ele, mantive correspondência regular nos últimos anos. Acompanhei virtualmente seu sofrimento, os exames que fazia, os remédios que tomava. Numa das mensagens, já no final, dizia ele: “Obrigado pelas energias boas. Estou assim: sinto um pouco de anemia. Estava inchado. Achei que estava “dengoso” querendo colo. Mas com a ajuda espiritual de muitos amigos, despertei e comecei a reagir e me disciplinar. Faço alongamento por 40 minutos todos os dias”
No final, estava perdendo a briga com a morte. Guardo no meu arquivo sua última mensagem enviada por e-mail: “Querido amigo e irmão José Bessa, venha me visitar, mas não se penalize da minha dor. Não melhoro. Minha vida está esvaindo-se sem cura... Nestes últimos dias cada centímetro do meu corpo é uma fonte de dores insuportáveis, causados pela metástase. Bjs. Peret”.
Uma viagem me impediu de atender ao chamado. Agora, no dia 17 de março, sua filha Denise me envia email com a notícia da partida do sertanista João Américo Peret (1926-2011). Um amigo comum, Marcos Terena, escreve:
- “Hoje, Américo Peret, indigenista e historiador, escritor e contador de histórias indígenas partiu para o campo eterno. Ele deixa um exemplo de abnegação e confiança na força dos Povos Indígenas, pois em tudo, sempre mostrava o valor da natureza, da cultura e da sabedoria. Solidariedade, respeito e silêncio”.
Ele se foi no mês de março – tubyraçó no calendário karajá - o tempo em que começa a vazante. À família enlutada e aos índios, os nossos sentimentos.
P.S – Já havia preparado um texto sobre a chegada do presidente dos Estados Unidos Barack Obama ao Brasil, mas a morte de Peret me fez mudar o tema da coluna dominical.
Fonte: TAQUIPRATI
Fonte: TAQUIPRATI
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