março 15, 2011

"Como devir esquerda?", por Bruno Cava

PICICA: "Como recomeçar a esquerda? desestabilizar as histórias encarquilhadas? irromper as identidades sectárias? hibridizar, propagar, multiplicar? como articular os saberes minoritários?, como proliferar os afetos ativos? como intensificar o amor pelo distante, pelo retorno da diferença? como constituir e partilhar novos mundos, onde se afirmam direitos que não existiam? o que precisa ser dito que nunca o foi, como dizê-lo?, e como fazê-lo sempre um pouquinho diferente (pouquinho contudo que faz toda a diferença), para que o movimento se faça numa dinâmica expansiva e multitudinária?"

Como devir esquerda?




O que é ser de esquerda? o que faz um partido de esquerda? quais exemplos de governos de esquerda? esquerda x direita? esquerda x esquerdismo? qual o papel do militante de esquerda?


Existem questões que galopam para o campo do abstrato. Muito rápido, tornam-se exercícios rebuscados de estilo e argumentação, porém vazios de concretude. É como o castelo de cartas: montado para o aplauso, mas frágil.


Há quem negue a dicotomia esquerda x direita: a esquerda morreu e o que aí está não passa de farsa. Em parte, têm razão, mas só quando falam de uma certa esquerda.


Outros estabelecem-na de modo dogmático e maniqueísta, ou seja, moralizam a dicotomia. Estes também estão certos, mas só na medida que, com esse discurso, se posicionam à direita.
Fantasmagórica Esquerda, essa que se reproduz com cacos de teoremas, teleologias redentoras, identidades (bate no peito pra dizer: sou de esquerda!), cosmovisões apocalípticas. Essa esquerda abstraída da materialidade das lutas, insensível às máquinas e circuitos do capitalismo. Essa que se rotula Esquerda como espírito de rebanho, com seus pastores e cajados. Ou como ressentimento diante de um inimigo injusto, identificar-se através do que se nega (moral dialética de escravos).

É preciso que a questão seja recomeçada mil vezes. Que seja reafirmado o primado do antagonismo, na ação e interpretação políticas.

Talvez melhor problema não seja o que significa ser de esquerda. Ou mesmo o que é a esquerda. O que importa é como devir esquerda.


Porque a esquerda vive. Na Praça Tahrir, em Túnis, em Madison, no carnaval de rua com suas máscaras de Ana de Hollanda e Tiririca, no trabalho imanente de uma multidão que produz e diferencia novos direitos. A esquerda afirmou a cópia livre, os novos modos de produzir da rede, o Wikileaks, a Wikipédia, o Wordpress.

Inquietações:


Como recomeçar a esquerda? desestabilizar as histórias encarquilhadas? irromper as identidades sectárias? hibridizar, propagar, multiplicar? como articular os saberes minoritários?, como proliferar os afetos ativos? como intensificar o amor pelo distante, pelo retorno da diferença? como constituir e partilhar novos mundos, onde se afirmam direitos que não existiam? o que precisa ser dito que nunca o foi, como dizê-lo?, e como fazê-lo sempre um pouquinho diferente (pouquinho contudo que faz toda a diferença), para que o movimento se faça numa dinâmica expansiva e multitudinária?

Não sou de esquerda. A esquerda acontece em mim. É uma vontade que vem e plá, muda a percepção. Niilismo heróico convertido em revolta. O medo cede à uma dinâmica expansiva de autovalorização. Generosa, a revolta se concretiza contra a ordem rígida do mundo caduco. O destino se prova frágil, percebe-se que a hybris pode destroçá-lo. Escapa-se da História, de seu passado e futuro pré-definidos. Constitui-se um novo tempo: um tempo intensivo, uma outra civilização onde a existência é uma aventura.

A esquerda vem antes da direita, como a resistência antes do poder, a vida antes da morte, o infinito do finito. Defrontada com a criação de outro mundo, a direita reage. Por isso reacionária. Não pretende perder sua posição dominante na tribo. Nesse momento, do inevitável choque de forças, se destacam duas estratégias para a esquerda: a luta e o êxodo.

Luta quando o antagonismo ganha espessura dramática, e assim a tensa narrativa adquire contornos épicos. Dá-se a condensação de afetos e armas, é Praça Tahrir ou Outubro Vermelho, Canudos ou Maio de 68.

Êxodo para comprovar que, sem a vitalidade e o amor, toda a exploração colapsa. Recusa quando entra em greve contra os patrões, mostrando quem manda na produção. Recusa também pós-industrial, quando se produz à margem das corporações e indústrias culturais, como rede colaborativa.

Quando deserta para longe de uma região explorada, onde pretendem fixar mão-de-obra precária. São os nordestinos no Sudeste ou os árabes na Europa, dentre tantas diásporas constituintes. Quando não faz o jogo nos termos postos pelo inimigo, o prefiro não da enrolação sistemática do escrivão Bartleby, de Herman Melville.

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