janeiro 09, 2012

"Cracolândia: Moradia, Drogas e a Governança na Metrópole", por Hugo Albuquerque

PICICA: "A simples enunciação de "Cracolândia" já nos põe frente à tese de que a causa da problemática social da região é um mal intrínseco e fantasmagórico chamado crack, algo tão inerente que, inclusive lhe nomeia. Que solução teria um lugar com esse - pensa o incauto - senão ser varrido do mapa?" (...)  Gestão dos corpos alheios por meio do álibi das drogas e gestão desumana dos espaços urbanos. Em tempo: Leia, também, "Cracolândia entre o populismo e a incompetência" e "Tá com dó? Leva pra casa!".

Cracolândia: Moradia, Drogas e a Governança na Metrópole

A Cracolândia -- Alessandro Shinoda/Folhapress
O Centro de São Paulo é uma região inacreditavelmente degradada. Só não é mais vergonhoso porque é chocante: seres humanos dormindo nas calçadas, muito lixo e sujeira, velhos prédios abandonados. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, é como se todos esses problemas fossem provocados por algum mal que lhe fosse tão inerente quanto ele é sobrenatural - e lá, convenhamos, é um território envolto por superstições, mas lembremos que elas jamais nascem do nada ou são produzidas à toa. 


Teorias não faltam para explicar isso. Segundo as palavras atribuídas a Andrea Matarazzo - ex-subprefeito da região e pré-candidato a prefeito pelo PSDB - em um cablede Wikileaks, o centro trata-se de uma terra de ninguémÉ um lugar cheio daquilo que os bons ativistas da rica  Higienópolis - limítrofe ao Centro - chamam de gente diferenciadaToda a vida, produção e resistência dos pobres que ainda habitam a região são ignoradas; esqueça todas as variáveis socioeconômicas, repete o planejador urbano de forma paranoica. 

Recentemente, abordamos a saga da Favela do Moinho - vítima de um incêndio muito mal-explicado e palco da fracassada implosão do prédio abandonado que constitui um de seus blocos e onde, presumivelmente, se originaram as chamas. Agora, o Centro volta ao noticiário por conta de mais uma intervenção policialesca da gestão Kassaba Operação Sufoco. Com isso, ele pretende desmobilizar a chamada Cracolândia, área que engloba praticamente todo o Centro e já o extravasa - e que entra no rol das grandes políticas kassabistas, a exemplo da operação delegada, na qual a polícia era usada para reprimir artistas de rua.

Falar em violência ou opressão contra a Cracolândia - ou sua criminalização, via ideologia - é chover no molhado: sua própria denominação já denota tudo isso, todo o resto é pura decorrência lógica - e de que outra forma se exerce o poder no Ocidente, senão pela atribuição de identidades que servem para controlar a potência de agir dos viventes e das coisas? 


A simples enunciação de "Cracolândia" já nos põe frente à tese de que a causa da problemática social da região é um mal intrínseco e fantasmagórico chamado crack, algo tão inerente que, inclusive lhe nomeia Que solução teria um lugar com esse - pensa o incauto - senão ser varrido do mapa?

Esqueça a especulação imobiliária, a violência policial e a pobreza. O problema é uma droga que, por si só, causa automaticamente todos aqueles males. Vivemos tempos curiosos: pessoas são viciadas em Rivotril, alcool, internet, comida, pílulas para emagrecer, pílulas para dormir, mas o foco se volta para o vício em drogas ilegais - ainda como se elas pudessem, por si, produzir o vício em si mesmas. Quais seriam as causas?


Tudo isso torna-se subterfúgio para a resolução do problema da pobreza pela eliminação dos pobres. O álibi já está pronto na figura do crackeiro. O crack acaba servindo ainda como caricatura para toda sorte de psicotrópicos, servindo ao recrudescimento da criminalização de todas drogas e como desculpa para a formatação de seus usuários - como se todos fossem viciados. Matam-se dois coelhos com uma cajadada só - vide as políticas de internamento compulsório que estão sendo discutidas, hoje, no plano federal.


Os pobres do Centro tornam-se necessariamente crackeiros - e aqueles em zumbis contaminados por um mal cuja libertação exige a dor da penitência. Superstições, aliás, não servem apenas à manipulação dos desavisados para que se movam voluntariamente para onde o Poder precisa que eles caminhem, mas também ao próprio alívio da culpa que os tiranetes e seus operadores também estão sujeitos. Se são todos zumbis, por que me preocupar?


E fazer referência ao fascismo histórico torna-se uma meia verdade no debate da questão urbana de São Paulo: é fato que a estetização da política sobreviveu à derrota do nazi-fascismo e incorporou-se à normalidade democrática, portanto, não é preciso ir muito longe para traçar qualquer paralelo. Políticas de reorganização urbana fundadas na limpeza, no embelezamento são a tônica dos dias atuais - e no Brasil isso ganha uma dimensão particularmente tensa, dado seu histórico e a proximidade dos megaeventos.


O objetivo de Kassab é limpar o Centro. Torna-lo um terreno propício para os novos negócios do setor imobiliário, uma vez que especular com prédios abandonados saiu de moda - o que a ausência de políticas sociais para a região central ajudava a mascarar, diga-se -, e agora a bola da vez são os novos empreendimentos. Os pobres, que moram nas ruas ou no Moinho, que se virem. Na falta de meios para a eliminação física direta e imediata, um processo de expulsão e confinamento na periferia da própria capital ou da região metropolitana. Gestão dos corpos alheios por meio do álibi das drogas e gestão desumana dos espaços urbanos. 

Fonte: O Descurvo

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